segunda-feira, 22 de abril de 2013

No meio do caminho tinha um livro, por João Marcos Buch*

Audiência na qual o réu, jovem de 20 anos, é julgado por roubo de celular, contra dois adolescentes que iam embora após o colégio. O réu confessa, diz estar arrependido e quer fazer tratamento para dependência de crack, pois quando dos assaltos tinha usado todo o dinheiro de seu serviço de servente com droga. Terminada a audiência, termos assinados...

– Posso ficar com uma cópia deste termo? – pergunta o réu.

– Mas por quê? – questiona o juiz. – É apenas um termo de deliberação. – O juiz prepara-se para voltar ao gabinete.

– É porque já li tudo que minha família me mandou lá na cadeia e pelo menos é algo mais para eu ler. – A linguagem do preso era em perfeito português. O juiz faz meia-volta, resolve ir adiante na conversa.

– Qual o último livro que você leu?

– “Comédias da Vida Privada”, do Luis Fernando Verissimo – responde o réu de pronto.

– Gostou? – insiste o juiz.

– Muito, é muito engraçado – rdealmente o réu era um bom leitor, concluiu o juiz.

– Espere um pouco, vou ver se tenho algum livro para te emprestar.

No gabinete, vasculha as prateleiras, acha o “Xangô de Baker Street”, do Jô Soares, lido tempos atrás e perdido entre seus livros jurídicos. Volta à sala de audiências.

– Serve este?

– Poxa, doutor, do Jô Soares. Claro que sim. Muito obrigado. Não vejo a hora de chegar no presídio para começar a ler.

O caso acima, verídico, serve para ilustrar a importância de, ao lado do trabalho, possibilitar-se a leitura de obras literárias a pessoas que estão presas. Qualquer um, ao ler um livro reflete, identifica-se ou não com o tema e os personagens, questiona, pensa. Pela leitura, a pessoa desenvolve a empatia e, consequentemente, compreende melhor a sua própria vida. E se isso contribui para a educação, então, é claro que o hábito da leitura é mais uma forma de resgate ético, de contribuição para a harmônica integração social do detento no dia em que retornar à liberdade.

Wittgenstein, filósofo do século 20, dizia que o universo de um homem é medido pelo tamanho de seu vocabulário. No caso acima descrito, o jovem preso tinha consciência de que havia prejudicado outros adolescentes, sabia que teria que pagar por isso e compreendia como tinha chegado até aquele ponto na vida, apontando inclusive um caminho para tentar sair da vida marginal. Essa compreensão ele conseguiu com a leitura, estou certo.

Por isso, a partir de 1º de maio, os reeducandos do complexo prisional de Joinville passarão a ter a possibilidade de ler, num prazo de 20 dias, uma obra da literatura clássica, com mais dez dias para apresentar um resumo do livro. Assim poderão abater quatro dias de pena. É o que consta da portaria nº 8/2013 da Vara de Execuções Penais da Comarca de Joinville.

– Tenha uma boa leitura rapaz – disse o juiz, despedindo-se do réu.

– Terei, sim. Depois de ler, vou passar para a frente. Posso?

– Um livro é para ser lido. Mande adiante.

E lá foi o réu, de volta para o presídio, escoltado, livre.

*Juiz de direito da Vara de Execuções Penais e corregedor do sistema prisional da Comarca de Joinville e membro da Associação Juízes para a Democracia


Fonte: Jornal A Notícia de 19/04/2013 (http://www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a4110918.xml&template=4187.dwt&edition=21790&section=2479)

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Juízes que o presidente do STF deveria reconhecer, por João Marcos Buch*

O Brasil vem consolidando sua economia, reduzindo a linha da pobreza e conquistando notoriedade internacional como o eldourado ocidental. Isso, porém, não significa que o abismo social tenha acabado ou diminuído expressivamente. Basta caminhar pelos centros urbanos ou atravessar os campos para se ver que ainda falta muito. Dificuldades no acesso a educação de qualidade, carências no sistema de saúde, segurança pública fragilizada.

Nestes tempos de pós-modernidade, em que as virtudes são valores em linha de combate, o Executivo nem sempre alinha políticas livres de fisiologismos e direcionadas efetivamente ao estado social, e o Legislativo nem sempre elabora leis que objetivem a concretização dos direitos. E neste aspecto é preciso reconhecer que o Judiciário também acaba faltando às pessoas, deixando muitas vezes de lhes garantir o acesso a direitos constitucionalmente consagrados. Pois bem, sem adentrar na esfera dos outros poderes do Estado e na defesa de boa parte de seus agentes políticos que fazem por merecer a autoridade depositada em suas pessoas pelo povo, pode-se dizer que, não obstante longe da perfeição, o Poder Judiciário desempenha fundamental papel na consolidação do Estado democrático de direito.

Na obra “Ética a Nicômano”, na qual Aristóteles nos dá profundas lições sobre as virtudes como caminho para a felicidade, percebe-se que a democracia nos moldes da Grécia antiga aproximava-se do ideal. Era uma democracia baseada em pessoas virtuosas, que exercitavam a coragem, temperança, magnanimidade. Hoje, depois de muitos anos compondo os quadros do Judiciário, ainda que possa parecer ausência de modéstia (não é), estou certo em afirmar que a magistratura do País é composta, em sua maioria absoluta, por homens justos, virtuosos, nos termos aristotélicos, composta por homens éticos. Nunca antes o Judiciário foi tão procurado. São centenas, milhares de decisões diárias, que reconhecem e determinam pelo Brasil afora a concretização de preceitos constitucionais. Na esfera individual, veem-se pessoas obtendo o respeito aos seus direitos, de uma garantia de participação em um concurso público ao acesso a medicamentos. Na esfera coletiva, direitos são conferidos em questões que vão do consumidor ao meio ambiente. Nem todas essas decisões alcançam notoriedade, mas todas alcançam as pessoas na sua demanda, conferindo a proteção do Estado.

Desta forma, e lamentando neste ponto as generalizadas e passionais declarações do atual presidente do Supremo Tribunal Federal, é possível dizer que os juízes trabalham na virtude. Atuam com coragem, não raras vezes tendo que enfrentar ameaças à própria vida. Atuam com temperança, não se deixando levar por paixões, refletindo e ponderando sobre a decisão tomada. Atuam com magnanimidade, dignificando o relevante mister de julgar. As naus da Justiça, não importa a força das intempéries, vão por esses cursos. É o que se acredita, é o que se concretiza.

*juiz corregedor em Joinville e conselheiro executivo da Associação Juízes para Democracia (AJD)

Fonte: Jornal A Notícia de 29/03/2013 ( http://www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a4089813.xml&template=4187.dwt&edition=21656&section=2479)