sexta-feira, 21 de junho de 2013

A Copa da consciência, por João Marcos Buch*

Uma onda de manifestações populares varre o Brasil. As passeatas começaram pelo Movimento Passe Livre em São Paulo. É um movimento que luta pelo direito ao transporte público sem custos ou menores custos, no caso paulista pelo não aumento de 20 centavos no passe. Neste caso, a falta de aptidão das autoridades no trato da situação acabou por fomentar uma grande mobilização País afora.

O Movimento Passe Livre começou na paz. Mas, como em todas as manifestações populares, sempre há grupos minoritários que pregam a violência como única forma de chamar a atenção ou grupos de pessoas descomprometidas com qualquer causa. Essa violência aconteceu. E o comando da Segurança Pública revidou esses menores atos com ações desproporcionais contra todos os manifestantes. São Paulo parecia ter retroagido no tempo, submetido a autoridades inconsequentes exatamente como ocorreu no massacre do Carandiru.

Atos precipitados, que ignoravam que os tempos são outros e que as liberdades públicas se firmaram para nunca mais sair. É claro que a partir disso, aliado ao silêncio das autoridades, a mobilização cresceu. E novamente foi retalhada, com mais vigor ainda. A onda assim ganhou corpo oceânico. As redes sociais, eficaz instrumento da democracia (vide Primavera Árabe), articularam-se e as pessoas foram para a rua protestar. Somente então é que o Estado, percebendo que São Paulo não é Istambul e que o Brasil não é a Turquia, fez a polícia compreender que sua função é, ao mesmo tempo, garantir a segurança, a liberdade de expressão e o direito de ir e vir de todos. Esse o desafio e a razão do Estado democrático de direito.

O movimento principal é o do “passe livre”. Porém, muitas bandeiras outras são defendidas, conforme a indignação de cada um. Há quem esteja indignado com a corrupção, há quem esteja indignado com a carga de impostos, com a violência, com a (in)justiça, com a ausência de políticas públicas de saúde, educação e segurança. Há quem esteja indignado com os custos da Copa do Mundo por vir, cujo investimento poderia ser feito nas políticas de combate à pobreza e à desigualdade social.

Naturalmente, os grupos são heterogêneos, provenientes de diferentes classes sociais. Mas há um ponto em comum entre todos. Pergunte aos milhões de manifestantes das ruas: você se sente representado pelos agentes políticos? Aí é que está a vala do rompimento. A resposta será não, que não se veem representados.

O resultado é que a passeata inicial do Movimento Passe Livre e a inabilidade do Estado na movimentação popular foram as gotas d’água que fizeram transbordar o pote de insatisfação das pessoas. Os brasileiros em geral sentem que após exercer seu direito ao voto e eleger seus representantes, as promessas e os compromissos assumidos se perdem. Sentem que as decisões políticas dos representantes do povo acabam não mais retratando a vontade popular. A consequência está aí, nas ruas, nos panfletos e cartazes expressando um basta.

Muitos dos movimentos sociais que agora ganham visibilidade já há muito iniciaram suas lutas, o “passe livre” é um deles. Eles tomam força. Mas precisam ficar alertas. Não faltam iniciativas que visam a criminalizá-los (vide projeto do novo Código Penal). Espera-se que essas organizações populares saibam canalizar essa legitimidade para além dos 20 centavos do passe. E a lição que os governos precisam tirar disso é que o Brasil não é mais um país cujo povo aceita passivamente decisões que definem seu destino. Como disse Engels, “um grama de ação vale mais do que uma tonelada de teoria”. Esse movimento jovem e esmagadoramente pacífico é uma tonelada de ação, pura energia para o fortalecimento dos valores democráticos. O Brasil mudou, e mudou para melhor.

*juiz corregedor em Joinville e conselheiro executivo da Associação Juízes para Democracia (AJD)

Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a4175580.xml&template=4187.dwt&edition=22201&section=892

quinta-feira, 20 de junho de 2013

A redução da tarifa e os trabalhadores

Jorge Luiz Souto Maior(*)


Os governantes e boa parte da intelectualidade disseram que não estavam entendendo nada do que estava acontecendo, referindo-se às mobilizações dos estudantes (liderados pelo MPL) que tomaram as ruas, mas talvez esteja aí a origem do problema, pois tinham, sobretudo os homens ligados às estruturas de poder, a obrigação de possuírem uma inteligência acerca do que se passa na realidade social.

A questão é que os governantes brasileiros (com exceção, talvez, de Vargas no segundo período e de Goulart) desde sempre se mostraram cegos às reivindicações sociais e se preocuparam apenas com dividendos políticos, para preservação do poder, aliando-se a estruturas reacionárias. Mesmo nos últimos anos, de FHC, Lula e Dilma, ainda que tenham operado mudanças nas estruturas sociais e econômicas arcaicas de nosso país, não adotaram políticas sociais, na perspectiva de efetivação dos direitos sociais constitucionais, pautando-se, no fundo, por uma lógica puramente assistencialista.

Os governos do Partido dos Trabalhadores, ao contrário do que se poderia esperar, não quiseram enfrentar os interesses econômicos reacionários e desprezaram, assim, tanto as manifestações sociais de reivindicação quanto os efeitos violentos decorrentes da injustiça social, uma injustiça cada vez mais alarmante, mesmo com o relativo sucesso do programa do “bolsa-família”. Aliás, há muito já alertava Chico de Oliveira que o sucesso do “bolsa-família era sintoma da falência social do país, que se evidenciou, recentemente, com a corrida aos Bancos para recebimento da parcela, após boato do cancelamento do pagamento.

Os recados estavam, há muito tempo, rondando à volta do governo e este, para se manter dentro da perspectiva do equilíbrio sustentável, enquanto promovia uma política de migalhas aos pobres, fazia ajustes de conciliação com o poder econômico, envolvendo, inclusive, algumas instituições sindicais de trabalhadores, visualizadas como base de apoio político. Assim, ao governo dos trabalhadores foi possível efetivar uma reforma previdenciária perversa à classe trabalhadora e dar prosseguimento à linha de flexibilização dos direitos trabalhistas, com estímulo à terceirização, inclusive no setor público (por exemplo, está no Congresso Nacional, para votação, com apoio do governo, projeto de lei que amplia as possibilidades de terceirização), e incentivo à negociação “in pejus”, tendo chegado mesmo a apoiar um projeto de lei que retirava os limites legais ao negociado (ACE), sem falar da aprovação da lei de recuperação judicial, que excluiu o caráter preferencial do crédito trabalhista e que afastou a sucessão de empregadores nos casos de aquisição de empresa no processo da recuperação, e da não regulamentação do inciso I, do art. 7º., da Constituição, que confere aos trabalhadores uma relação de emprego protegida contra dispensa arbitrária, sendo que tal providência poderia ser facilmente implementada pela ratificação da Convenção 158 da OIT.

Além disso, não enfrentou, de forma direta, os problemas da moradia (e das conseqüentes ocupações), dos direitos indígenas, das cotas raciais e da reforma agrária, além de não ter se contraposto aos monopólios privados nos setores da comunicação, da saúde e da educação (incentivando o ensino privado com o PROUNI, em 2004, e tentando consertar o erro com o REUNI, em 2007, mas sem o orçamento necessário, projetando, ainda, uma reforma para daqui a vários anos), ao mesmo tempo em que não acolheu uma política salarial consistente e digna para os professores da rede pública, inclusive no que tange às condições de trabalho, mantendo, no ano passado, uma atitude extremamente intransigente e repressiva contra os servidores federais em greve, culminando, tudo isso, com a privatização dos portos e da produção do petróleo.

Mais, presentemente, pressionado internacionalmente, o governo participou da votação da Convenção 189 da OIT, referente à igualdade de direitos entre empregados domésticos e demais empregados, mas não ratificou a Convenção e concordou com a edição de uma Emenda Constitucional que a despeito de efetivar a igualdade tenta manter algumas diferenças, que podem ser fixadas por norma regulamentadora, que, por sua vez, pode significar uma pressão para baixo sobre os direitos dos demais trabalhadores.

Essa postura do governo, pautada por uma lógica, ainda que bem intencionada, de efetivar uma reforma social gradual, teve que ser acoplada a uma política de preservação no poder, o que exigiu ajustes e conciliações com setores conservadores e econômicos da sociedade, fazendo com que as conquistas alcançadas não valessem a pena pelo preço pago. Ainda que a política assistencial – importante, diga-se de passagem – tivesse agradado aos setores mais pobres da sociedade, notadamente da região norte/nordeste do país, isso não foi o suficiente, primeiro, para retirar, concretamente, as pessoas atingidas da linha da miséria se atualizado o valor de ganho para tal avaliação (e o programa também não foi mais eficiente em razão dos desvios recentemente revelados), até porque o pão não foi acompanhado de educação, cultura em geral e demais estruturas sociais, atraindo as pessoas ao consumo sem sustentação real, sendo baseado, principalmente, no endividamento (a dívida interna, no Brasil, cresceu assustadoramente nos últimos anos) e, segundo, para criar uma identificação mais clara com os interesses da classe trabalhadora.

Esse capitalismo tardio, sem política efetiva de formação da classe trabalhadora, sem conflito de classe, sem política social, acabou gerando frustrações de consumo e estímulo à violência pela percepção da injustiça social (Fortaleza, por exemplo, tornou-se uma capital, proporcionalmente, duplamente mais violenta que São Paulo).

E como nem o pão foi suficiente, o governo se envolveu com o circo. Assim, arregimentou a vinda da Copa e das Olimpíadas para o Brasil, mas, para tanto, foi forçado a desviar ainda mais seus recursos das políticas sociais públicas, aprofundando seu comprometimento com setores econômicos privados, chegando mesmo a ser conivente com as exigências anti-sociais, anti-democráticas e colonialistas da FIFA, que também desconsideravam vários direitos fundamentais, consagrados na Constituição brasileira.

O fenômeno da violência urbana, ademais, era um sintoma fácil de ser percebido em todas as cidades brasileiras, não se limitando apenas ao problema patrimonial. De fato, as pessoas, sem a percepção da existência de um projeto de sociedade e sem crença em valores humanos, estavam matando umas as outras por motivos “fúteis” e “banais”, a ponto de no final de 2012 o Conselho Nacional do Ministério Público lançar a Campanha de Combate ao que denominou Banalização da Violência. As notícias de crimes de toda ordem assustavam a todos a cada manhã, e de forma cada vez mais intensa.

Enquanto isso o governo estava empenhado no projeto de redução da tarifa de luz e na implementação das “obras” do PAC, com favorecimento de grandes empreiteiras por intermédio da lei que instituiu a PPP (Parceria Público-Privada), fazendo vistas grossas e mesmo participando ativamente, por meio de um resquício da ditadura, a Força de Segurança Nacional, da repressão e massacre de trabalhadores em Belo Monte, Santo Antônio e Jirau.

E, ao incentivar a atuação sindical de caráter negocial, promovendo a concorrência interna dos trabalhadores, deixou em situação difícil os sindicatos de luta, também porque não estavam vinculados à base aliada do governo.

Em suma, a aposta em reformas graduais, que exigiam preservação do poder, desviou o foco do Partido dos Trabalhadores e mesmo seus méritos foram perdidos ou não puderam gerar o necessário dividendo político. Ao se desvincular das causas dos trabalhadores, favorecendo os setores econômicos (os Bancos nunca ganharam tanto dinheiro neste país, dizia, orgulhosamente, o Presidente Lula), o governo alimentou a injustiça social e isso ampliou a violência urbana. A classe média, vítima dessa violência, embora fosse favorecida, em certa medida, pela política econômica adotada, viu nessa circunstância, que é grave, há de se reconhecer, a oportunidade para se rebelar contra o governo, pedindo segurança e atacando a corrupção, até porque, em conformidade com sua mentalidade elitizada, essa classe não apenas acreditava que merecia as benesses que lhe foram concedidas como também nunca chegou a admitir que um operário fosse um dos maiores símbolos de liderança que este país teve – e essa é uma verdade incontestável.

Ou seja, o PT escolheu os aliados errados e o pior foi ter que se envolver, para se preservar no poder, o que era essencial para o projeto de reformas ao longo prazo, com um sistema político viciado e corrupto. Ao se postar da mesma forma, passou a ser presa fácil dos seus adversários políticos e econômicos e este rabo preso, identificado no tal “mensalão”, lhe perseguiu como praga.

Em 24 de abril, uma marcha de 20 mil pessoas (composta de trabalhadores rurais, sem-terras, ativistas do movimento por moradia, operários, professores, servidores públicos, aposentados, estudantes e ativistas ligados aos movimentos LGBT's) foi até Brasília para explicitar sua insatisfação com tudo isso, notadamente contra o projeto de lei do ACE, e, de certo modo, para conferir uma oportunidade ao governo para se redimir, mas não deu tempo.

Em conclusão, os integrantes do governo sabiam muito bem o que estava acontecendo e a intelectualidade só não sabia se não se atentou para as angústias historicamente sofridas pela classe trabalhadora brasileira, com os gravames dos últimos anos. Os governantes foram surdos aos reclamos e quando a mobilização social da juventude foi para as ruas, pedindo redução da tarifa do transporte público, adotaram o discurso reacionário e a ação repressiva. Mas, o movimento tinha a percepção política do que estava acontecendo e atitude refratária somente fez crescer a convicção de que a luta era essencial para esta pauta, que, ademais, está interligada a um sentimento crítico estrutural, ainda que se tenha tentado negar essa consciência ao movimento e se tenha a ele integrado, no calor das manifestações, outras pautas sem a mesma conotação de cunho social. Por oportuno, registre-se que a mesma postura de negação ao diálogo, fingindo não entender o grito, foi o que fez crescer o movimento contra os gastos da Copa e o apelo, enfim, pela democracia.

O momento, agora, na perspectiva dos trabalhadores e dos movimentos sociais, é de explicitar, sem medo, toda essa conjuntura, que se tentou mascarar pela fórmula da negação do conhecimento sobre o que estava acontecendo, para que fique registrado que os problemas sociais ainda persistem e que, portanto, a mobilização ainda tem razão de ser, sobretudo para que nenhum ajuste de preservação de poder, como forma de superação do momento de crise, seja feito de modo a, novamente, prejudicar os trabalhadores, como se daria, por exemplo, com o acolhimento de alguma das 101 (cento e uma) providências flexibilizantes requeridas pela FIESP, com o não acolhimento da igualdade integral de direitos trabalhistas aos empregados domésticos e, principalmente, com a aprovação dos projetos de lei do ACE e da terceirização, perigo este que se torna mais concreto principalmente agora que o anúncio da redução da tarifa em São Paulo foi feito em uma coletiva com a presença do Prefeito Haddad e do Governador Alckmin.

São Paulo, 19 de junho de 2013.

(*) Professor livre-docente do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP, Juiz do Trabalho e membro da Associação Juízes para a Democracia