segunda-feira, 7 de abril de 2014

Racionalizar com ternura, por João Marcos Buch*


Começamos por onde, doutor?

– Pelo pátio central da “C”.

O juiz adentrava na unidade prisional. Já havia passado por muitas, do interior do País até dos EUA e da Europa. Estava agora no Presídio Central de Porto Alegre, com cerca de 4,4 mil detentos, superlotado, obviamente. Estrutura de meio século, nunca sofrera grandes reformas. Era composto de vários blocos de dois e três andares, com centenas de detentos por andar, cada andar comandado por um “prefeito” de facção.

As celas não tinham portas e os presos circulavam livremente nas galerias, obedecendo ao “prefeito”. Não possuíam vestuário, kit de higiene e alimentação suficiente. A Brigada Militar, que, para auxiliar provisoriamente o Estado, tinha assumido o local em 1995, lá ainda permanecia, em disfunção constitucional. O juiz ficaria duas semanas na unidade para fazer um relatório a respeito. Reunir-se-ia com a sociedade civil organizada e com as instituições públicas. Faria visitas ao prédio, acompanhado de seu assessor, conversaria com brigadianos, saberia de suas carências e desafios e, claro, contataria detentos e familiares.

Naquele primeiro dia, a realidade crua da miséria humana superou seu treinamento mental. Após solicitarem ao líder de galeria que esvaziasse o ambiente, pisaram no pátio central. Pouco maior que uma quadra de esportes, chão de cimento, traves improvisadas de futebol em cada uma das extremidades, o espaço era circundado pelos prédios das galerias. As paredes, em puro reboco, eram salpicadas por janelas deterioradas, lembrando um cortiço em ruínas, com roupas e toalhas desbotadas penduradas. Nos cantos do pátio, o lixo se acumulava.

Se a visão era dolorosa, pior era o odor. O esgoto saía de buracos perto das janelas dos prédios, escorrendo pelas paredes e se depositando aos pés dos pilares. Ali, a face do precipício do caos se desnudava em toda sua tragédia. Aquele pátio era usado pelas centenas de detentos para banho de sol, almoço e visitas. Mães, pais, filhos e filhas, idosos e crianças conviviam entre lixo e esgoto. Os detentos tinham sido presos em razão da lei e acabavam alijados da própria lei, deixados à própria sorte. Como podia o Estado do século 21 admitir o depósito de seres humanos em locais tão indignos? Tal qual uma ópera, cujas vozes dos tenores e sopranos ecoam por dias após o espetáculo, aquelas sensações ficariam marcadas na pele do juiz.

– Amanhã, continuamos por mais um pátio – disse o juiz, rumo à saída. Algum tempo era necessário para racionalizar. O caminho seria longo e árduo. Mas precisava ser feito.

*JUIZ DE DIREITO DA VARA DE EXECUÇÕES PENAIS E CORREGEDOR DO SISTEMA PRISIONAL DA COMARCA DE JOINVILLE

Fonte: Jornal A Notícia de 04/04/2014 (http://www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a4465178.xml&template=4187.dwt&edition=24046&section=2479)