terça-feira, 23 de agosto de 2011

Defensoria Pública em Santa Catarina: o desafio da consolidação do Estado Democrático de Direito

Alessandro da Silva*

A Constituição Federal de 1988 refundou o Estado Brasileiro a partir de bases democráticas. A função jurisdicional foi uma das que mais recebeu atenção, com significativas modificações, o que revelou a intenção do constituinte de fortalecer o Estado Democrático de Direito.

O Poder Judiciário foi transformado com ampliação de sua estrutura material e de pessoal, modificação da organização institucional e criação de mecanismos e instrumentos que visaram ampliar o acesso à Justiça e permitir a solução justa das lides, em prazo razoável.

O Ministério Público também foi objeto de completa remodelação, pois deixou de ser arrolado como órgão do Poder Executivo, para figurar em um capítulo à parte daqueles destinados aos demais Poderes, como função essencial à justiça.

Segundo Sepúlveda Pertence1, o Ministério Público foi:

desvinculado do seu compromisso original com defesa judicial do Erário e a defesa dos atos governamentais aos laços de confiança do Executivo, está agora cercado de contraforte de independência e autonomia que o credenciam ao efetivo desempenho de uma magistratura ativa de defesa impessoal da ordem jurídica democrática, dos direitos coletivos e dos direitos da cidadania.

Em explícita oposição ao período autoritário que a antecedeu, a Constituição Federal de 1988 declarou expressamente a existência de direitos sociais e individuais, como liberdade, igualdade, saúde, educação, moradia e segurança. Também estabeleceu como objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem pobreza e livre de preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Preocupada não apenas em estabelecer uma declaração formal de direitos, a Constituição também previu uma série de medidas que buscaram dar efetividade a eles, como a ampliação do acesso à justiça.

Mas não bastava garantir o mero acesso à via judiciária, já previsto nas Constituições anteriores, a Carta Cidadã buscou estabelecer o direito de acesso a uma ordem jurídica justa, que segundo Kazuo Watanabe2 compreende:

1) o direito a informação e perfeito conhecimento do direito substancial e à organização de pesquisa permanente a cargo de especialistas e orientada à aferição constante da adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica do País; 2) direito de acesso à justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; 3) direito a preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; 4) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à Justiça com tais características.

Percebe-se que, além do acesso ao Judiciário, nesse novo modelo há destaque para a educação que visa dar conhecimento acerca dos próprios direitos e para o respeito aos direitos dos outros. Assim, o acesso à justiça pode ser encarado como o requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos - de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir e não apenas proclamar os direitos de todos3.

Dessa forma, o acesso à ordem jurídica justa deve alcançar todos os cidadãos e não somente àqueles que podem pagar por orientação jurídica ou para o ajuizamento de ações, visto que cabe ao Estado prestar “assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (art. 5º, LXXIV, da CF).

Para que o Estado pudesse cumprir com esse objetivo, a Constituição inovou ao criar a Defensoria Pública, “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV” (art. 134).

Percebe-se que o modelo de assistência jurídica aos necessitados por meio da Defensoria Pública é parte de um processo de afirmação da cidadania e consolidação da democracia, estabelecido na Constituição Federal de 1988.

A adoção desse sistema foi objeto de profunda discussão durante a constituinte, tendo em vista a existência de outros modelos, como a defensoria dativa, no qual advogados indicados pela OAB prestam assistência judiciária. Portanto, não cabe mais questionar se a opção pela Defensoria Pública foi ou não a mais adequada.

Como era de se esperar em um Estado Democrático de Direito, esse foi o caminho seguido pela imensa maioria dos entes federados da nossa República, com a nada honrosa exceção de Santa Catarina, único que ainda não instituiu a Defensoria Pública.

Dentre outros argumentos menos consideráveis, o principal sustenta que o sistema de defensoria dativa cumpriria de maneira mais eficaz o dever de prestar assistência jurídica aos necessitados.

O argumento é claramente equivocado, já que a Defensoria Pública vai além da mera atuação em processo judicial e também abrange o papel preventivo, de orientação e educação. Como instituição goza de autonomia funcional e administrativa, o que lhe permite inclusive atuar em face do poder público.

Já a defensoria dativa é uma atividade pulverizada, sem uma diretriz de atuação definida, que se limita à assistência judiciária, pois os advogados somente recebem seus honorários do Estado se ajuizarem uma ação.

De todo modo, essa discussão não tem sentido, pois se cada cidadão puder descumprir a Constituição com o singelo argumento de que tem uma solução melhor do que a por ela adotada, nosso Estado Democrático de Direito estará com os dias contados. A prevalecer a posição catarinense, logo teremos que admitir, por exemplo, que outro Estado possa extinguir o Ministério Público e transferir suas funções para os procuradores do estado.

Ora, a escolha pelo modelo de Defensoria Pública já foi feita pela Constituição e cabe aos Estados cumprir o que ela estabeleceu!

O fato é que em nosso estado até as pedras sabem que a grande resistência, até agora bem sucedida, à criação da Defensoria Pública, se dá pela cúpula local da OAB. A defensoria dativa é utilizada em grande medida como um meio de subsistência para advogados em início de carreira e sua manutenção serve de plataforma eleitoral nas eleições da seccional.

O sistema também abastece os cofres da entidade, que fica com dez por cento de todos os valores pagos pelo Estado como honorários aos defensores dativos. São cerca de três milhões de reais anuais destinados à OAB a título de indenização pelas despesas com administração da defensoria dativa. Dinheiro público, cuja utilização não está sujeita a nenhum tipo de controle externo.

Essa postura pequena, de um corporativismo mesquinho, contrária a explícitas manifestações de presidentes do Conselho Federal4, mancha a atuação da seccional da OAB em Santa Catarina e é incompatível com a grandeza dos posicionamentos que, ao longo da história, essa instituição assumiu.

Essa conduta vai de encontro à postura de várias entidades com a quais a OAB, em regra, anda de braços dados na defesa das boas causas, pois a sociedade catarinense se organizou e apresentou na Assembleia Legislativa um projeto de lei de iniciativa popular, com 48 mil assinaturas, para criação da Defensoria Pública.

Além disso, tramitam no Supremo Tribunal Federal duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade que têm por objeto o sistema de defensoria dativa adotado em Santa Catarina, sendo que na de número 3892 o Procurador Geral da República apresentou parecer no qual afirma que:

A olhos vistos, no Estado de Santa Catarina se ignora o modelo constitucional de instituição autônoma funcional e administrativamente para a Defensoria Pública. Em suma, o Estado absolve-se, pelo sistema normativo que adota, do dever de prestar assistência jurídica aos necessitados, remetendo tal papel a organismo estranho ao corpo estatal.

A obstinação de Santa Catarina em permanecer na ilegalidade faz lembrar a conhecida anedota da família que foi assistir a parada militar em que o rapaz desfilava. Quando o seu regimento passava, o pai não se conteve de orgulho e exclamou: “Puxa, no meio de tanta gente, o nosso filho é o único com o passo certo!”

Também revela o tamanho do desafio que temos pela frente para criar e consolidar instituições que são essenciais à afirmação do Estado Democrático de Direito, em meio à resistência daqueles que, na expressão de Raymundo Faoro, ex-presidente do Conselho Federal da OAB, insistem em se considerar donos do poder5.


* Juiz do Trabalho em Santa Catarina, membro da Associação Juízes para a Democracia


1 Apud MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 602.

2 WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. São Paulo: RT, 1988. p. 128.

3 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2002. p. 11-12.

4 Brasília, 17/11/2004 - O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, defendeu hoje (17) a concessão de maior autonomia à Defensoria Pública, um dos itens da Reforma do Judiciário previstos para serem votados logo mais pelo Senado Federal. “A autonomia funcional e administrativa para a defensoria pública é perfeitamente cabível. Mais do que cabível, é necessária”, afirmou Busato, certo do avanço do Senado também neste campo. (...) In “Busato defende maior autonomia para Defensoria Pública”. http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=3180 .

Brasília, 25/02/2007 – (...) Na ocasião, Brito também lembrou que é do Estado a tarefa de garantir o acesso à Justiça e, por meio das defensorias públicas, assegurar assistência aos mais necessitados. E garantiu que a OAB cobrará esses compromissos. In “Defensores Públicos agradecem apoio de Cezar Britto”. http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=9086 .

5 Cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Globo, 2001.