terça-feira, 18 de maio de 2010

DEMOCRACIA E EXCLUSÃO SOCIAL: BREVES APONTAMENTOS APOIADOS EM FRIEDRICH MÜLLER (1)

Fernando de Castro Faria*

Em “Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático?”, Friedrich Müller relata que ““Democracia” é uma das expressões mais indeterminadas e pergunta: diante de expressões como governo “do” povo, “pelo” povo, “para”o povo e “em nome” do povo, onde deverá ficar o povo em meio a tanto governo?"2

A referência ao povo, continua Müller, “é uma forma de legitimação, como se o sistema funcionasse com base na soberania popular e na autodeterminação do povo. Todavia, a teoria tradicional da democracia não deixa claro como a ação ex officio, o exercício do poder estatal podem ser retrorreferidos “ao povo” nos seus detalhes”.3

Acerca da nova função do direito na era do Estado Democrático de Direito, ensina Lenio Streck que ele: “agora é transformador da realidade. E é exatamente por isso que aumenta sensivelmente o pólo de tensão em direção da grande invenção contramajoritária: a jurisdição constitucional, que, no Estado Democrático de Direito, vai se transformar na garantidora dos direitos fundamentais-sociais e da própria democracia”.4

Já a democracia, segundo Friedrich Müller, é conceituada como a “forma de Estado que a partir de determinados índices-limiares não é efetivamente eliminada pela exclusão, no sentido técnico, organizacional das suas formas e dos seus procedimentos. A democracia somente pode subsistir, isto é, continuar viva, como democratização em ampliação permanente.”5

Refere, por outro lado, que “Democracia não existe, existem, isso sim, tentativas bastante distintas de institucionalizar “democraticamente” uma sociedade estatalmente organizada.”

No tocante ao termo “exclusão social”, como ensina Patrícia Helena Massa Arzabe:

Surgiu na década de 60, mas a partir da crise dos anos 80 passou a ser intensamente utilizado, integrando discursos oficiais para designar as novas feições da pobreza nos últimos anos. A expressão, por ser relativamente recente, está longe de ser unívoca, mas está sempre relacionada às concepções de cidadania e integração social. Normalmente é empregado para designar a forma de alijamento dos frutos da riqueza de uma sociedade e do desenvolvimento econômico ou o processo de distanciamento do âmbito dos direitos, em especial dos direitos humanos.6

Bem se sabe que não é tarefa simples a diminuição da desigualdade social, mormente quando se percebe a dominação da economia sobre diversos setores sociais, inclusive no âmbito do Direito. As prioridades têm sido a redução do “custo Brasil”, a “maximização do lucro”, a “eficiência”, o cumprimento de “metas de produtividade”, tudo em flagrante detrimento do compromisso com a concretização dos Direitos Fundamentais e Sociais, na linha do exposto por Morais da Rosa7

Já em termos políticos, refere Friedrich Müller que:

Todos devem ter direitos iguais – do contrário a alternância de maioria e minoria não é mais um mecanismo real. Minorias não devem funcionar como bonecos de papel que de qualquer modo serão novamente vencidos pelo voto; em uma sociedade dividida de forma pluralista, elas devem ter uma chance comprovável de se converterem em maiorias. Isso pressupõe que o povo na sua totalidade possa participar efetivamente do processo político.

Eis um dos principais aspectos da exclusão social: a não participação política do povo quando da tomada de decisões. Votar a cada dois anos significa pouco, principalmente quando nem se sabe em que projeto político (que via de regra é sinônimo de simples interesse na conquista/permanência do/no poder) se está votando.

Vale lembrar que a cidadania, segundo o senso comum, tem sido entendida, apenas, como o direito de votar e ser votado. Bem se sabe, todavia, que a cidadania vai muito além deste aspecto meramente representativo.

Mas como adverte Müller, as pessoas “estão por demais ocupadas com a sobrevivência no dia-a-dia para que se possam engajar politicamente no sentido mencionado ou exercer, com razoáveis chances de êxito, influência nas organizações políticas estabelecidas.”8

Entretanto, Müller reconhece que “uma democracia se legitima a partir do modo pelo qual ela trata as pessoas que vivem no seu território – não importa se elas são cidadãs ou titulares de direitos eleitorais ou não”.

Fica evidenciado, portanto, que, apesar das dificuldades de participação do povo na tomada de decisões (não apenas no aspecto meramente representativo), não resta outro caminho, se se pretende falar em democracia, que não seja pela reconstrução da cidadania e pela inclusão social.

É como assevera Müller: A democracia avançada não é, portanto, apenas um status activus democrático; não é mais um mero dispositivo de técnica jurídica para definir como textos de normas são postos em vigor (como “leis são promulgadas”). Ela é, agora, sobretudo um nível de exigências aquém do qual não se pode ficar, se ainda quisermos falar de uma forma de democracia (...).9.

Em suma, segundo o autor, é o tratamento dado a cada um dos membros do povo. Acrescenta que: O enfraquecimento da auto-estima, a falta de “reconhecimento”, conduz à paralisia das pessoas afetadas enquanto seres políticos (...) e que a injustiça econômica, social e política se vêem acrescida da jurídica: excluídos, indefesos, pobres, marginais tipicamente não podem mais contar com a proteção jurídica, são por assim dizer liberados para a caça.10

Mas que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático? Segundo Müller, o Estado Constitucional oferece dois parâmetros:

Primeiro limite: a maioria absoluta a partir de 50% (do povo ativo ou de todos os habitantes). O princípio da maioria se reveste de central importância. Se a maioria está perdida para a democracia, a própria democracia está perdida.

Segundo limite: maioria que altera a Constituição (2/3 – Alemanha e EUA e 3/5 – Brasil e França). No Brasil e na França se exige “menos” democracia para alterar a Constituição – 60% contra 66,67% dos EUA e Alemanha. 11

Para o autor, deve-se analisar o número de não votantes (abstenções, brancos e nulos) acrescido do índice de pobreza (excluídos). Se o resultado for superior ao que preceitua a Constituição para a sua alteração, significa que “o sistema democrático perde seu status de legitimação em termos de conteúdo, e então ocorre uma fatal alteração da Constituição.”12

O autor cita exemplos: na Europa a soma fica abaixo do limite para alteração da Constituição, mas no Brasil e EUA fica acima.

Müller faz ainda algumas propostas para o Brasil, tendentes a minimizar a exclusão social, dentre as quais destaco: a reforma agrária, a diminuição da carga tributária para os pobres, os investimentos em educação e formação profissionalizante, sanções eleitorais aos partidos e candidatos e não ao eleitor que não vota, levar a CRFB/88 ao pé da letra (cita os artigos 5º, 231 e 232) e o combate à impunidade.13

Podemos concluir, portanto, que, sendo verdadeira a assertiva de que o Brasil é um dos países em que a desigualdade social se manifesta de forma mais incisiva, também é verdade que a minimização de tal problema só se dará quando houver vontade política para se cumprir os direitos fundamentais e sociais. Tais direitos, aliás, não podem ser tratados apenas como uma faculdade do administrador público de cumpri-los ou não. Trata-se de verdadeiro comando constitucional!

Mas para que o administrador público “entenda” que o comando constitucional, tanto no que se refere aos direitos fundamentais quanto aos direitos sociais, deve ser cumprido, é preciso que haja participação popular na cobrança de tais direitos, quer pelo voto, quer pela participação no orçamento ou pela fiscalização da coisa pública e participação na tomada de decisões, respeitado, por certo, o que está no âmbito da discricionariedade do agente público.

A fase de positivação de tais direitos no plano constitucional já passou, sendo flagrante retrocesso, de acordo com a nova doutrina constitucional, falar-se em normas de conteúdo meramente “programático” ou de “boas intenções”. Não, isso já está superado.

Por fim, como já advertia Müller, em 1999, quando de sua conferência na Faculdade de Direito da UFRGS:

Os juristas com mandato e competência para tal fim estão aqui objetivamente no papel de uma vanguarda social e deveriam assumir esse papel corajosamente; tanto mais, quando justamente no Brasil os juristas, especialmente os advogados exerceram desde o séc. XIX uma influência progressista. Eles são simultaneamente precursores de uma consciência pública mais ampla da força vinculante da Constituição e das leis; situados em posição de destaque, cabe-lhes a tarefa de atuar no sentido de uma melhor comunicação na ciência, na práxis e na política jurídica, em nível nacional e também além das fronteiras do país.14

O compromisso, portanto, é com a concretização de direitos, ainda que pela via judicial.

1 O presente estudo, ora em resumo, é fruto do seminário “Direitos sociais como direitos exigíveis” apresentado na disciplina “Efetividade dos Direitos Fundamentais”, do curso de Mestrado da Univali, sendo professor da disciplina o Doutor Marcos Leite Garcia.

2 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático? Tradução de Peter Naumann. Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura, 2000.

3 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 567.

4 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. rev. amp. e com posfácio. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. 594p.

5 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 569.

6 ARZABE, Patrícia Helena Massa. Pobreza, Exclusão Social e Direitos Humanos: o papel do Estado. Buscalegis. Disponível em < http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/25758/25321 >. Acesso em: 24 abr. 2010.

7 ROSA, Alexandre Morais da; LINHARES, José Manuel Aroso. Diálogos com a LAW & ECONOMICS. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.

8 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 568.

9 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 571.

10 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 572/573.

11 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 589/590.

12 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 591/592.

13 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 592/593.

14 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 593.

* Mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí e membro da Associação Juízes para a Democracia

terça-feira, 4 de maio de 2010

Não é esquecendo as atrocidades que deixaremos de repeti-las

Marcelo Semer


A ministra Carmen Lúcia resumiu de forma curiosa seu voto pela improcedência da ação que buscava firmar os limites da anistia: “Não vejo como reinterpretar uma lei, trinta e um anos depois”. No ano passado, todavia, o próprio STF em expressiva maioria, havia feito, em dimensão muito superior, o mesmo com a Lei de Imprensa. Entendeu-a totalmente contrária à Constituição, não trinta, mas quase quarenta anos depois de sua edição.

Os dois pesos e duas medidas são representativos do ativismo seletivo que toma conta do STF. Em certas questões, a Suprema Corte não se constrange em fazer papel de legislador –como quando decide que, a despeito da vontade expressa do constituinte que não a previu, a fidelidade partidária estaria escrita nas entrelinhas da lei. Em outros momentos, nega jurisdição. Como afirmou Eros Grau: a tarefa de rever a lei da anistia é do Legislativo, não do Judiciário. Mas a tarefa de interpretar a lei é, e sempre será, do Judiciário.

O que a ADPF da OAB pretendeu não era anular a lei da anistia (a OAB de hoje contra a OAB de ontem, acusou Eros Grau): tratava-se de firmar a interpretação de que as torturas praticadas pelos agentes da repressão, emanadas pelo Estado, não eram crimes conexos aos políticos e, por conseguinte, não estão abrangidas pela anistia. Entender o contrário, significaria legitimar uma auto-anistia do estado torturador –que viola os mais comezinhos princípios do direito internacional dos direitos humanos.

O ministro Celso de Mello ressaltou que sendo nossa anistia não teria esse vício, pois fora fruto de um acordo. Mas em quê condições, foi este acordo efetuado? Em um país ainda sob o jugo do regime militar e sem eleições livres –ou seja, ainda sem democracia e sem liberdade.

Paciência, diria Ellen Gracie, pois não se faz uma transição pacífica entre um regime autoritário e uma democracia plena sem a existência de concessões recíprocas. “A anistia foi o preço que a sociedade pagou para acelerar o processo de redemocratização”, estampou em seu voto.

Pagamos o preço, então, por duas vezes: a primeira por ficar vinte anos sem democracia; a segunda, para esquecer os crimes de quem nos oprimiu sob pena de não voltarmos à democracia. Difícil crer que analisando uma situação similar a esta, em outro contexto, a ministra não reconhecesse alguma forma de extorsão.

O ministro Marco Aurélio que pretendeu por um fim à discussão antes mesmo de começá-la, supostamente por ausência de qualquer dúvida de interpretação, afastou o caráter nocivo do perdão aos torturadores com uma afronta a memória das vítimas: a anistia é ato de amor e paixão.

É possível olhar para frente, sem conhecer o passado?

Para Gilmar Mendes, é a amplitude do esquecimento que contribui para o passo adiante no caminho da democracia. Mas ao esquecermos do período negro, estaremos aprendendo a não cometer os mesmos erros? Os povos que foram vítimas de genocídio, judeus, armênios entre tantos outros, buscam por todos os mecanismos manter viva a memória de seus períodos negros. É a lembrança das atrocidades que nos provoca repulsa, não o esquecimento.

O mito da cordialidade veio novamente à tona, com o presidente da Corte, Cezar Peluso: se é verdade que cada povo resolve seus problemas de acordo com sua cultura, “o Brasil fez uma opção pelo caminho da concórdia”. Nós repudiamos a tortura, mas optamos, pela cordialidade, em não puni-la.

O voto de Enrique Lewandoswki acolhia ao menos parcialmente as razões do pedido, por entender que a abrangência da anistia aos agentes do Estado não era automática e devia ser apreciada por cada juiz no caso concreto.

Mas foi o vice-presidente Ayres Brito quem melhor resumiu o sentido do julgamento, entendendo o que estava em discussão naquele momento: Perdão coletivo é falta de memória e de vergonha.

Eros Grau defendeu-se com uma crítica enviesadamente progressista: reinterpretar a lei da anistia é esvaziar a luta pela redemocratização: “Reduzir a nada essa luta, é tripudiar sobre os que, com desassombro e coragem, lutaram pela anistia”.

Mas, findo o julgamento, é questão de se perguntar: quem tripudiou sobre aqueles que com desassombro e coragem lutaram pela redemocratização? Quem exercita com o chapéu alheio nosso lado cordial, admite o silêncio como preço pela liberdade de hoje, alimenta o esquecimento como única forma de dar um passo adiante?

Fechando os olhos aos abusos de ontem, como se justificássemos os de hoje, sob o pretexto do esquecimento, do amor e da paixão, do mal necessário (que, enfim, supõe-se, muitos no fundo acreditem, seja contra subversivos seja contra criminosos), o Estado ensina a seus agentes que cordial mesmo é o povo que apanha, não reclama e depois esquece. Paga o seu preço


Fonte:http://blog-sem-juizo.blogspot.com/