Marcelo Semer
A ministra Carmen Lúcia resumiu de forma curiosa seu voto pela improcedência da ação que buscava firmar os limites da anistia: “Não vejo como reinterpretar uma lei, trinta e um anos depois”. No ano passado, todavia, o próprio STF em expressiva maioria, havia feito, em dimensão muito superior, o mesmo com a Lei de Imprensa. Entendeu-a totalmente contrária à Constituição, não trinta, mas quase quarenta anos depois de sua edição.
Os dois pesos e duas medidas são representativos do ativismo seletivo que toma conta do STF. Em certas questões, a Suprema Corte não se constrange em fazer papel de legislador –como quando decide que, a despeito da vontade expressa do constituinte que não a previu, a fidelidade partidária estaria escrita nas entrelinhas da lei. Em outros momentos, nega jurisdição. Como afirmou Eros Grau: a tarefa de rever a lei da anistia é do Legislativo, não do Judiciário. Mas a tarefa de interpretar a lei é, e sempre será, do Judiciário.
O que a ADPF da OAB pretendeu não era anular a lei da anistia (a OAB de hoje contra a OAB de ontem, acusou Eros Grau): tratava-se de firmar a interpretação de que as torturas praticadas pelos agentes da repressão, emanadas pelo Estado, não eram crimes conexos aos políticos e, por conseguinte, não estão abrangidas pela anistia. Entender o contrário, significaria legitimar uma auto-anistia do estado torturador –que viola os mais comezinhos princípios do direito internacional dos direitos humanos.
O ministro Celso de Mello ressaltou que sendo nossa anistia não teria esse vício, pois fora fruto de um acordo. Mas em quê condições, foi este acordo efetuado? Em um país ainda sob o jugo do regime militar e sem eleições livres –ou seja, ainda sem democracia e sem liberdade.
Paciência, diria Ellen Gracie, pois não se faz uma transição pacífica entre um regime autoritário e uma democracia plena sem a existência de concessões recíprocas. “A anistia foi o preço que a sociedade pagou para acelerar o processo de redemocratização”, estampou em seu voto.
Pagamos o preço, então, por duas vezes: a primeira por ficar vinte anos sem democracia; a segunda, para esquecer os crimes de quem nos oprimiu sob pena de não voltarmos à democracia. Difícil crer que analisando uma situação similar a esta, em outro contexto, a ministra não reconhecesse alguma forma de extorsão.
O ministro Marco Aurélio que pretendeu por um fim à discussão antes mesmo de começá-la, supostamente por ausência de qualquer dúvida de interpretação, afastou o caráter nocivo do perdão aos torturadores com uma afronta a memória das vítimas: a anistia é ato de amor e paixão.
É possível olhar para frente, sem conhecer o passado?
Para Gilmar Mendes, é a amplitude do esquecimento que contribui para o passo adiante no caminho da democracia. Mas ao esquecermos do período negro, estaremos aprendendo a não cometer os mesmos erros? Os povos que foram vítimas de genocídio, judeus, armênios entre tantos outros, buscam por todos os mecanismos manter viva a memória de seus períodos negros. É a lembrança das atrocidades que nos provoca repulsa, não o esquecimento.
O mito da cordialidade veio novamente à tona, com o presidente da Corte, Cezar Peluso: se é verdade que cada povo resolve seus problemas de acordo com sua cultura, “o Brasil fez uma opção pelo caminho da concórdia”. Nós repudiamos a tortura, mas optamos, pela cordialidade, em não puni-la.
O voto de Enrique Lewandoswki acolhia ao menos parcialmente as razões do pedido, por entender que a abrangência da anistia aos agentes do Estado não era automática e devia ser apreciada por cada juiz no caso concreto.
Mas foi o vice-presidente Ayres Brito quem melhor resumiu o sentido do julgamento, entendendo o que estava em discussão naquele momento: Perdão coletivo é falta de memória e de vergonha.
Eros Grau defendeu-se com uma crítica enviesadamente progressista: reinterpretar a lei da anistia é esvaziar a luta pela redemocratização: “Reduzir a nada essa luta, é tripudiar sobre os que, com desassombro e coragem, lutaram pela anistia”.
Mas, findo o julgamento, é questão de se perguntar: quem tripudiou sobre aqueles que com desassombro e coragem lutaram pela redemocratização? Quem exercita com o chapéu alheio nosso lado cordial, admite o silêncio como preço pela liberdade de hoje, alimenta o esquecimento como única forma de dar um passo adiante?
Fechando os olhos aos abusos de ontem, como se justificássemos os de hoje, sob o pretexto do esquecimento, do amor e da paixão, do mal necessário (que, enfim, supõe-se, muitos no fundo acreditem, seja contra subversivos seja contra criminosos), o Estado ensina a seus agentes que cordial mesmo é o povo que apanha, não reclama e depois esquece. Paga o seu preço
Fonte:http://blog-sem-juizo.blogspot.com/