quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A violência no Rio

Polícia, Exército, Marinha e Aeronáutica, unidos pela ordem, preparados para a guerra, defendendo a população. A retomada do Estado na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão vem tendo o apoio da esmagadora maioria. Quando jornais destacam atos heroicos, o primeiro sentimento é de satisfação. Afinal, o bem está vencendo o mal. E como é bom ver o orgulho de bem servir estampado na face de nossos policiais. Não consigo descrever muito bem, existe uma certa ansiedade em meu peito, um senão, que não consigo identificar. Parodiando Shakespeare, sinto que há “algo de podre no reino da Dinamarca”. Depois, sinto como quando nos dias imediatos ao “11 de setembro”, em que qualquer dúvida lançada sobre as investidas de Bush levavam à estigmatizante afirmação de que os críticos estavam ao lado dos terroristas.

Também agora existe um temor de que a voz que se levanta para questionar a atuação na guerra contra o crime logo será vista como vinda de quem é contra a paz e a polícia. Bem o contrário, a polícia nos protege e nos dá conforto, nos traz paz. É para isso que existe. Ainda assim, precisamos deixar nossa zona de conforto e pensar um pouco, num compromisso com a racionalidade.

Por que só agora a intervenção? Como se chegou a essa inversão social? De onde vêm as armas dos traficantes? Quem formou milícias e fez vistas grossas ao terror imposto por traficantes? Quem deixa de investir na segurança e controle de fronteiras para impedir a entrada de armamento e droga? Quem deixa de controlar a produção de armas nacionais e o seu desvio? Quem faltou nos mais básicos direitos à comunidade? Quem manda para o cárcere os filhos da miséria e deixa impune os que sangram a Nação com desvios de dinheiro público, muitas vezes em pacto com traficantes? Quem se apresenta só para reprimir e maquiar o caminho aos holofotes, gastando bilhões em reformas de estádios, quando escolas e postos de saúde ficam à míngua?

O Estado ausente em seu próprio reduto, na incompetência em garantir os direitos fundamentais, fecha os olhos ao fato de que na sua falta as facções criminosas infiltram-se, corrompem seus órgãos, intimidam inimigos e vendem proteção. E agora que as investidas aconteceram, onde passarão a atuar os barões do tráfico? E ainda, doravante um Estado incorruptível permanecerá em todo seu significado democrático e de direito nessas comunidades órfãs de saúde, educação, habitação, saneamento, cultura e segurança pública? A paz se faz pelas calçadas do respeito à dignidade, e num Estado democrático de direito a ordem a ela serve, jamais o contrário.

JOÃO MARCOS BUCH, Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Joinville e membro da Associação Juízes para a Democracia

Fonte: Jornal A Notícia de 01/12/2010