Jorge Luiz Souto Maior*
Escrevo o presente texto entre uma audiência e outra e o momento não poderia ser mais oportuno para a presente reflexão. É que, em todas as audiências realizadas, instaura-se um diálogo franco e aberto entre os presentes, pondo-se em avaliação as possíveis irregularidades jurídicas cometidas, com a consequente fixação da forma de sua regularização. De forma rígida, em respeito à ordem jurídica trabalhista, que envolve várias questões de ordem pública, e também em respeito a todos os demais cidadãos brasileiros que não estão presentes à audiência, as soluções preconizadas em acordos e sentenças nas audiências que presido são sempre baseadas no resgate da autoridade do direito, a que todos devem respeito. O conhecimento prévio desse pressuposto tem feito com que as manifestações e os atos se desenvolvam a partir do reconhecimento implícito de que se deve agir em conformidade com o direito. Não fosse assim não haveria parâmetro para medir as condutas no sentido de saber se foram regulares ou irregulares. Não haveria o próprio direito e, por consequência, também o ilícito.
As audiências constituem um momento explícito de atuação do direito, no qual todos, indistintamente, mesmo o juiz, em função dos limites jurídicos de sua atuação, medidos pelos fundamentos de suas decisões, se vêem constrangidos a agir em conformidade com o ordenamento jurídico, sendo certo que se este fixa obrigações também confere direitos.
De forma um pouco mais poética é possível identificar a audiência como um dos momentos em que o Direito, abstratamente consignado em textos legais, ganha vida, valendo destacar que esse parto não é sempre um momento tranquilo. Ele envolve conflitos, tensões, manifestações às vezes mais calorosas, defesas de pontos de vista, decisões, protestos, recursos etc. O parâmetro, de todo modo, é sempre o mesmo: o da atuação em conformidade com a ordem jurídica, o que confere a todos a sensação da plena eficácia do Estado Democrático de Direito, que se faz presente tanto no aspecto processual, da atuação no processo, quanto no que se refere à avaliação da correção dos atos praticados na vida em sociedade, no caso do Direito do Trabalho, nas relações de trabalho subordinado.
Pois bem, em meio a esse autêntico exercício de cidadania, somos todos, presentes a uma audiência, pegos de surpresa, pela notícia, posta na internet, de que o presidente Lula teria dito que o senador Sarney não pode ser tratado como uma “pessoa comum”, deixando transparecer que a ordem jurídica só se aplica a nós, as pessoas comuns. O presidente Lula, mesmo sem intenção de fazê-lo — no que se acredita plenamente — acabou agredindo a sociedade brasileira, que procura agir com respeito às instituições jurídicas.
Talvez tenha tentado dizer que somente as pessoas comuns cometem deslizes éticos ou praticam atos ilícitos, do que estão isentos os “não-comuns”. Mas aí então sua fala seria uma agressão ainda maior.
E o ex-presidente, senador José Sarney, por sua vez, agrediu a todos, não pela manifestação de sua defesa, até porque ninguém pode ser incriminado antes do devido processo legal. O senador tem amplo direito de negar as acusações, e até de dizer que pode estar sendo vítima de uma conspiração. Mas não pode, de jeito algum, sugerir que os erros do passado fiquem sem a devida punição, cabendo a cada um atribuir-lhe o próprio julgamento, até porque, como se sabe, as “pessoas comuns” não estão inseridas em sua fala, e estas, por certo, estão submetidas ao julgamento das instituições jurídicas.
Ambos falaram em preservar as instituições democráticas, destacando a importância delas para a sociedade. Disso não se discorda. Mas as instituições não se preservam a partir dos pressupostos que ambos estabeleceram. É importante, ademais, que tenham a consciência de que as instituições democráticas não lhes pertencem. Os homens do poder costumam confundir suas pessoas com as próprias instituições e é essa, ademais, a origem do malsinado nepotismo. A confusão é tanta que consideram que os “erros” cometidos se constituem, no máximo, em uma opção equivocada. Mas não: os homens do poder, em um Estado de Direito, exercem o poder em nome do povo, seguindo os padrões do Direito. Seus atos, que não respeitam esse pressuposto, são uma ilegalidade — a mais grave de todas, porque gera a descrença em toda a sociedade quanto à validade da ordem jurídica, e causa desânimo em todos que, diariamente, postam-se na defesa estrita da autoridade do Direito.
É por isso que, na qualidade de um cidadão brasileiro, consciente de que não existem gradações meritórias na condição humana, venho, publicamente, exigir uma retratação dos referidos senhores, pois se há alguma discussão no que tange à existência de atos secretos no Senado e quanto às responsabilidades daí decorrentes, dúvida não há de que as falas que proferiram, conforme acima destacado, constituíram uma agressão explícita aos conceitos fundamentais de cidadania e de Estado Democrático de Direito.