Luiz Fernando Cabeda*
O último boletim da Associação Juízes para a Democracia informa que ela apóia campanha da OAB, no que diz respeito ao STF, sobre a reparação plena de ações repressivas ali havidas no Regime Militar.
No texto da OAB é mencionado que três ministros foram cassados e que outros dois renunciaram em protesto contra a cassação dos colegas.
Gostaria de, brevemente, esclarecer algo a respeito.
A agressão ao STF começou no Governo Castelo Branco, quando foram aumentadas as cadeiras de 11 para 16 (Carta outorgada de 1967), isso para diluir as opiniões que se mostravam contrárias aos excessos do Regime Militar. Essas opiniões formavam a maioria, a tal ponto que mantiveram Ribeiro da Costa na presidência do Supremo, para além do seu mandato (enquanto “durasse a sua jurisdição”, isto é, por todo o tempo restante de sua atividade). Quando do AI-5/1968, e com base nele, três ministros foram aposentados compulsoriamente e não cassados.
Como os termos ‘aposentadoria compulsória’, ‘expurgo’, ‘cassação’ de mandatos ou de direitos políticos, ‘exílio’, ‘confinamento’, ‘disponibilidade’, ‘liberdade vigiada’, ‘banimento’ e outros - usados profusamente nos textos da época - têm sentido jurídico específico (ainda que o fim ideológico guardasse a mesma fonte e força), é importante que os mantenhamos agora, quando tratamos de recuperar a memória histórica verdadeira, sem versões opinativas.
Os efeitos deletérios contra os ministros Victor Nunes Leal (nomeado por Juscelino) e Hermes Lima (nomeado por Jango) se concretizaram plenamente (o último já tinha sido preso em 1935, dividindo cela com Graciliano Ramos), e o grande trabalho jurídico-político que ambos fizeram praticamente ficou confinado ao tempo até então.
Já o ministro Evandro Lins e Silva praticou próspera e longa advocacia depois de aposentado, e ainda usufruiu da condição de ex-ministro com muita desenvoltura. Embora pareça mesquinharia, fazia questão de usar o estacionamento da Justiça Federal do Rio de Janeiro (no prédio histórico do STF) enquanto atuava no Foro com a performance bem acolhida de um status que manteve. Sem fazer censura alguma, de todo modo incabível, perceber diferenças de situação pessoais é obrigatório.
Não consigo ver identidade de efeitos danosos entre os dois primeiros e o último. Danos para o país, por certo houve, pela quebra das garantias e pelo retrocesso institucional. Houve também uma linha de continuidade repressiva, mais visível na cúpula, mas bem maior nos porões, ... não esqueçamos.
Por outro lado, os ministros Gonçalves de Oliveira (tão importante como Pedro Lessa na elaboração da doutrina brasileira do habeas corpus, pois foi ele quem inaugurou e persistiu na concessão das liminares pelo Supremo) e Lafaiete de Andrade se aposentaram e não renunciaram em protesto. A inconformidade dos últimos ficou manifesta, mas não da forma dita. Talvez se tivessem antecipado a uma pressentida nova medida de força, talvez não. Nunca saberemos. Na época eram passados muitos recados bastante indutivos de comportamentos públicos.
Lembremos que quando a “Banda de Música da UDN” (Bilac Pinto, Aliomar Baleeiro, Adaucto Lúcio Cardoso ...) veio a dominar o Supremo, também Adaucto afinal agiu da mesma maneira, aposentando-se ao romper com o Regime, lançando sua toga sobre a cadeira, quando percebeu que a inflexibilidade para com as iniciativas permitidas à oposição criava um círculo vicioso de autoritarismo (por aquele tempo, foi reconhecido que a arguição de inconstitucionalidade se constituía em atribuição privativa absoluta do procurador-geral da República – que era Moreira Alves, e que nunca a propunha para preservar direitos políticos).
Tancredo Neves, bem mais sábio do que todos eles (fiéis ao Regime ou arrependidos), já havia concluído: “a ‘Revolução de 64’ foi o Estado Novo da UDN”. Que talento de síntese ...
A partir das três aposentadorias compulsórias (e seus desdobramentos, com as duas voluntárias ), o Supremo passou de novo a contar com 11 ministros (AI-6/1969), pois já se havia criado nova maioria que apoiava o Regime Militar, primeiro sob a batuta de Luis Gallotti, depois a de outros tantos, até Moreira Alves, tornado ministro, num longo período só encerrado no Judiciário com a democratização pela Carta de 88.
Assim, a bem da verdade, houve intrepidez e heroísmo (nesse sentido, o nome saliente foi o de Ribeiro da Costa), mas também colaboracionismo bastante maior, depois das aposentadorias compulsórias (o seu auge foi com Antonio Neder na presidência).
Parece-me que o colaboracionismo também deva ser execrado – ao mesmo tempo – como aconteceu na Alemanha pós-nazista, na Espanha pós-franquista e na Argentina democratizada.
Dois remanescentes da época da edição do AI-5 ainda têm presença política e opinam desenvoltos: Jarbas Passarinho e Delfim Netto, sendo o último consultor informal do presidente da República. Nunca pareceu que, com a tinta das suas assinaturas naquele Ato, tenham admitido que sujaram também as mãos com sangue.
Meu temor é que eles desmintam os termos da boa proposta de reparar ao Supremo – mas mal redigida – levando-nos ao constrangimento, pois seria muito doloroso e contrário a belo intento admitir que tenham razão ...
Estaria, portanto, mais que chegada a hora de dar o nome certo a fatos e pessoas e não deixar que morram uns e outras sem a maldição que exatamente lhes corresponde. Para a glória dos que resistiram e penaram sob a gente surda e endurecida do desencanto camoniano, revivido no Brasil dos anos de chumbo.
* Magistrado de 2º. Grau egresso do TRT/12ªR-SC
Autor de “A Justiça Agoniza” e outros ensaios
Com estágio na Escola Nacional da Magistratura da França - Seção Internacional