Humano, demasiado humano. O premiado documentário “Entre a Luz e a Sombra”, de Luciana Burlamaqui a respeito da vida da atriz Sophia Bisilliat, da dupla de rap 509-E formada por Dexter e Afro-X e de um juiz que acredita em meios dignos de ressocialização, cujos destinos se cruzaram no complexo do Carandiru por cerca de sete anos, traz ao espectador sentimentos confusos e raciocínios truncados. Não é fácil pensar e ver alguns palmos à frente do nariz.
O filme em sua cruel realidade nos faz lembrar dos fundamentos históricos da violência e da natureza humana. Aponta os fatores da caminhada do crime urbano, dentre eles os sociais, neoliberais, da indústria do consumo, da privação de oportunidades, afeto, educação e trabalho dignos. Ao mesmo tempo, mostra a desgraça de um estado ausente em direitos individuais e sociais e presente no chicote da pena. O pior é que o Carandiru, muito embora implodido há uns pares de anos, continua existindo por todos os lados.
Em Joinville, por exemplo, ainda que o Estado tente empurrar para debaixo do tapete o medieval Presídio Regional, lá está ele, vivo, pulsando, uma verdadeira panela de pressão. Por anos a fio, nossos governantes vêm tentando ignorar a superlotação e aumento da população carcerária, que na última década dobrou e em Joinville: passou de cerca de 500 para mil detentos. Basta uma simples visita ao Presídio Regional para perceber a falta de saneamento básico, com esgotos que transbordam; a alimentação inadequada, despida das mais básicas regras nutricionais; a negação de produtos de higiene pessoal, com detentos dependendo de familiares e favores internos para obtenção de um simples xampu ou uma pasta de dente; a carência de servidores devidamente valorizados, sem estrutura material ou amparo psicológico.
Falta tudo e falta, principalmente, respeito, respeito com o ser humano, especialmente com aquele já historicamente ignorado e usado como massa de manobra e consumo. Então, quando algo dá errado, quando na falta do Estado legal o paralegal se instala e rebeliões acontecem, as autoridades aparecem, lançam acusações e propalam planos de duvidosa execução. E a sociedade descrente e mal informada varre para debaixo do tapete novamente esta parte de seu corpo, na esperança medrosa de que as coisas se acalmem. Ledo engano. “Entre a Luz e a Sombra” coloca alguma lógica em tudo isso e mostra a irracionalidade ignorante do sistema penitenciário e as políticas públicas pouco sérias a respeito, que só fazem alimentar essa tragédia social.
Quiçá nossos governantes também assistam ao documentário. Melhor, quiçá destinem uma pequena parte de seu tempo para olhar o problema com honra e coragem. Então, assim como Nietzsche fez há mais de 130 anos, reconheceriam nossa natureza humana, demasiada humana, e com humildade e ética tentariam de vez trabalhar na construção de uma sociedade mais solidária e justa.
Fonte: Jornal A Notícia de 24/01/2012 (http://www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a3640831.xml&template=4187.dwt&edition=18848§ion=892)