segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Tormenta e coragem, por João Marcos Buch*

Numa tórrida manhã de janeiro, estava eu no presidio, tratando com os detentos assuntos variados – informação sobre processos, penas e pedidos gerais de melhorias, como fornecimento de água, produtos de higiene, saneamento e colchões. São pessoas que perderam a liberdade, mas que nunca perderam o caráter humano e que devem ser respeitadas na sua integridade. Depois, retornei ao Fórum, onde o trabalho em dobro esperava, tanto nos processos quanto na busca das autoridades públicas responsáveis pela grave situação.
Na manhã seguinte, estive na Polícia Militar, numa aula para soldados em formação. A turma era compenetrada, atenciosa. Tratei de direitos fundamentais e segurança pública. Depois da preleção, questionamentos: por que pessoas presas muitas vezes são encontradas livres logo em seguida? Por que a violência urbana aumenta? Quais os limites da atuação policial? Creio que consegui me fazer compreender. Não é porque as prisões estão um caos, pela falta de uma política de Estado profícua e transparente, que não se deva, dentro da lei, prender quem esteja em flagrante delito. Porém, sempre e sempre devem ser respeitadas as garantias constitucionais. 

Duas manhãs, dois mundos. O ser humano continua existindo atrás das grades. Quando adentro nas entranhas das prisões, consigo sentir o que significa viver ou trabalhar nelas. Tenho, então, a breve noção do terror que é boa parte do sistema carcerário. Nesse mundo, vive-se em estado de exceção, com detentos ávidos por trabalho, por estudo, por liberdade, mas largados à própria sorte, sujeitos à cooptação de facções criminosas. Isso sem esquecer dos agentes penitenciários, que pouco podem, pois não valorizados e não reconhecidos. Já no outro mundo, o Estado é presente, com soldados disciplinados, engajados. Os policiais, como todos, estão sujeitos a acertos e erros. Muitas vezes, quando tudo o mais deu errado, acabam ficando na linha de frente para proteger as pessoas. Como deve ser difícil raciocinar e ter sempre a consciência de que sua missão é garantir as liberdades públicas e a segurança de todos, independentemente de qual lado da linha estejam as pessoas. Dois mundos interdependentes. O desafio é equacionar esses dois lados. Quanto mais liberdade, menos segurança. Quanto mais segurança, menos liberdade. Liberdade sem segurança é utópico. Segurança sem liberdade é tirania. Que esses mundos saibam que pertencem à mesma raça, a raça humana, num padrão de civilidade que não admite mais retrocessos. Liberdade e segurança todos desejam. (p.8)


*Juiz de direito da Vara de Execuções Penais, corregedor do sistema prisional de Joinville, membro da Associação Juízes para a Democracia


Fonte: Jornal A Notícia de 07/02/2014  (http://www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a4412145.xml&template=4187.dwt&edition=23684&section=2479)