Jorge Luiz Souto Maior(*)
Os
governantes e boa parte da intelectualidade disseram que não estavam
entendendo nada do que estava acontecendo, referindo-se às mobilizações
dos estudantes (liderados pelo MPL) que tomaram as ruas, mas talvez
esteja aí a origem do problema, pois tinham, sobretudo os homens ligados
às estruturas de poder, a obrigação de possuírem uma inteligência
acerca do que se passa na realidade social.
A
questão é que os governantes brasileiros (com exceção, talvez, de Vargas
no segundo período e de Goulart) desde sempre se mostraram cegos às
reivindicações sociais e se preocuparam apenas com dividendos políticos,
para preservação do poder, aliando-se a estruturas reacionárias. Mesmo
nos últimos anos, de FHC, Lula e Dilma, ainda que tenham operado
mudanças nas estruturas sociais e econômicas arcaicas de nosso país, não
adotaram políticas sociais, na perspectiva de efetivação dos direitos
sociais constitucionais, pautando-se, no fundo, por uma lógica puramente
assistencialista.
Os
governos do Partido dos Trabalhadores, ao contrário do que se poderia
esperar, não quiseram enfrentar os interesses econômicos reacionários e
desprezaram, assim, tanto as manifestações sociais de reivindicação
quanto os efeitos violentos decorrentes da injustiça social, uma
injustiça cada vez mais alarmante, mesmo com o relativo sucesso do
programa do “bolsa-família”. Aliás, há muito já alertava Chico de
Oliveira que o sucesso do “bolsa-família era sintoma da falência social
do país, que se evidenciou, recentemente, com a corrida aos Bancos para
recebimento da parcela, após boato do cancelamento do pagamento.
Os
recados estavam, há muito tempo, rondando à volta do governo e este,
para se manter dentro da perspectiva do equilíbrio sustentável, enquanto
promovia uma política de migalhas aos pobres, fazia ajustes de
conciliação com o poder econômico, envolvendo, inclusive, algumas
instituições sindicais de trabalhadores, visualizadas como base de apoio
político. Assim, ao governo dos trabalhadores foi possível efetivar uma
reforma previdenciária perversa à classe trabalhadora e dar
prosseguimento à linha de flexibilização dos direitos trabalhistas, com
estímulo à terceirização, inclusive no setor público (por exemplo, está
no Congresso Nacional, para votação, com apoio do governo, projeto de
lei que amplia as possibilidades de terceirização), e incentivo à
negociação “in pejus”, tendo chegado mesmo a apoiar um projeto de lei
que retirava os limites legais ao negociado (ACE), sem falar da
aprovação da lei de recuperação judicial, que excluiu o caráter
preferencial do crédito trabalhista e que afastou a sucessão de
empregadores nos casos de aquisição de empresa no processo da
recuperação, e da não regulamentação do inciso I, do art. 7º., da
Constituição, que confere aos trabalhadores uma relação de emprego
protegida contra dispensa arbitrária, sendo que tal providência poderia
ser facilmente implementada pela ratificação da Convenção 158 da OIT.
Além
disso, não enfrentou, de forma direta, os problemas da moradia (e das
conseqüentes ocupações), dos direitos indígenas, das cotas raciais e da
reforma agrária, além de não ter se contraposto aos monopólios privados
nos setores da comunicação, da saúde e da educação (incentivando o
ensino privado com o PROUNI, em 2004, e tentando consertar o erro com o
REUNI, em 2007, mas sem o orçamento necessário, projetando, ainda, uma
reforma para daqui a vários anos), ao mesmo tempo em que não acolheu uma
política salarial consistente e digna para os professores da rede
pública, inclusive no que tange às condições de trabalho, mantendo, no
ano passado, uma atitude extremamente intransigente e repressiva contra
os servidores federais em greve, culminando, tudo isso, com a
privatização dos portos e da produção do petróleo.
Mais,
presentemente, pressionado internacionalmente, o governo participou da
votação da Convenção 189 da OIT, referente à igualdade de direitos entre
empregados domésticos e demais empregados, mas não ratificou a
Convenção e concordou com a edição de uma Emenda Constitucional que a
despeito de efetivar a igualdade tenta manter algumas diferenças, que
podem ser fixadas por norma regulamentadora, que, por sua vez, pode
significar uma pressão para baixo sobre os direitos dos demais
trabalhadores.
Essa
postura do governo, pautada por uma lógica, ainda que bem intencionada,
de efetivar uma reforma social gradual, teve que ser acoplada a uma
política de preservação no poder, o que exigiu ajustes e conciliações
com setores conservadores e econômicos da sociedade, fazendo com que as
conquistas alcançadas não valessem a pena pelo preço pago. Ainda que a
política assistencial – importante, diga-se de passagem – tivesse
agradado aos setores mais pobres da sociedade, notadamente da região
norte/nordeste do país, isso não foi o suficiente, primeiro, para
retirar, concretamente, as pessoas atingidas da linha da miséria se
atualizado o valor de ganho para tal avaliação (e o programa também não
foi mais eficiente em razão dos desvios recentemente revelados), até
porque o pão não foi acompanhado de educação, cultura em geral e demais
estruturas sociais, atraindo as pessoas ao consumo sem sustentação real,
sendo baseado, principalmente, no endividamento (a dívida interna, no
Brasil, cresceu assustadoramente nos últimos anos) e, segundo, para
criar uma identificação mais clara com os interesses da classe
trabalhadora.
Esse
capitalismo tardio, sem política efetiva de formação da classe
trabalhadora, sem conflito de classe, sem política social, acabou
gerando frustrações de consumo e estímulo à violência pela percepção da
injustiça social (Fortaleza, por exemplo, tornou-se uma capital,
proporcionalmente, duplamente mais violenta que São Paulo).
E como
nem o pão foi suficiente, o governo se envolveu com o circo. Assim,
arregimentou a vinda da Copa e das Olimpíadas para o Brasil, mas, para
tanto, foi forçado a desviar ainda mais seus recursos das políticas
sociais públicas, aprofundando seu comprometimento com setores
econômicos privados, chegando mesmo a ser conivente com as exigências
anti-sociais, anti-democráticas e colonialistas da FIFA, que também
desconsideravam vários direitos fundamentais, consagrados na
Constituição brasileira.
O
fenômeno da violência urbana, ademais, era um sintoma fácil de ser
percebido em todas as cidades brasileiras, não se limitando apenas ao
problema patrimonial. De fato, as pessoas, sem a percepção da existência
de um projeto de sociedade e sem crença em valores humanos, estavam
matando umas as outras por motivos “fúteis” e “banais”, a ponto de no
final de 2012 o Conselho Nacional do Ministério Público lançar a
Campanha de Combate ao que denominou Banalização da Violência. As
notícias de crimes de toda ordem assustavam a todos a cada manhã, e de
forma cada vez mais intensa.
Enquanto
isso o governo estava empenhado no projeto de redução da tarifa de luz e
na implementação das “obras” do PAC, com favorecimento de grandes
empreiteiras por intermédio da lei que instituiu a PPP (Parceria
Público-Privada), fazendo vistas grossas e mesmo participando
ativamente, por meio de um resquício da ditadura, a Força de Segurança
Nacional, da repressão e massacre de trabalhadores em Belo Monte, Santo
Antônio e Jirau.
E, ao
incentivar a atuação sindical de caráter negocial, promovendo a
concorrência interna dos trabalhadores, deixou em situação difícil os
sindicatos de luta, também porque não estavam vinculados à base aliada
do governo.
Em suma,
a aposta em reformas graduais, que exigiam preservação do poder,
desviou o foco do Partido dos Trabalhadores e mesmo seus méritos foram
perdidos ou não puderam gerar o necessário dividendo político. Ao se
desvincular das causas dos trabalhadores, favorecendo os setores
econômicos (os Bancos nunca ganharam tanto dinheiro neste país, dizia,
orgulhosamente, o Presidente Lula), o governo alimentou a injustiça
social e isso ampliou a violência urbana. A classe média, vítima dessa
violência, embora fosse favorecida, em certa medida, pela política
econômica adotada, viu nessa circunstância, que é grave, há de se
reconhecer, a oportunidade para se rebelar contra o governo, pedindo
segurança e atacando a corrupção, até porque, em conformidade com sua
mentalidade elitizada, essa classe não apenas acreditava que merecia as
benesses que lhe foram concedidas como também nunca chegou a admitir que
um operário fosse um dos maiores símbolos de liderança que este país
teve – e essa é uma verdade incontestável.
Ou seja,
o PT escolheu os aliados errados e o pior foi ter que se envolver, para
se preservar no poder, o que era essencial para o projeto de reformas
ao longo prazo, com um sistema político viciado e corrupto. Ao se postar
da mesma forma, passou a ser presa fácil dos seus adversários políticos
e econômicos e este rabo preso, identificado no tal “mensalão”, lhe
perseguiu como praga.
Em 24 de
abril, uma marcha de 20 mil pessoas (composta de trabalhadores rurais,
sem-terras, ativistas do movimento por moradia, operários, professores,
servidores públicos, aposentados, estudantes e ativistas ligados aos
movimentos LGBT's) foi até Brasília para explicitar sua insatisfação com
tudo isso, notadamente contra o projeto de lei do ACE, e, de certo
modo, para conferir uma oportunidade ao governo para se redimir, mas não
deu tempo.
Em
conclusão, os integrantes do governo sabiam muito bem o que estava
acontecendo e a intelectualidade só não sabia se não se atentou para as
angústias historicamente sofridas pela classe trabalhadora brasileira,
com os gravames dos últimos anos. Os governantes foram surdos aos
reclamos e quando a mobilização social da juventude foi para as ruas,
pedindo redução da tarifa do transporte público, adotaram o discurso
reacionário e a ação repressiva. Mas, o movimento tinha a percepção
política do que estava acontecendo e atitude refratária somente fez
crescer a convicção de que a luta era essencial para esta pauta, que,
ademais, está interligada a um sentimento crítico estrutural, ainda que
se tenha tentado negar essa consciência ao movimento e se tenha a ele
integrado, no calor das manifestações, outras pautas sem a mesma
conotação de cunho social. Por oportuno, registre-se que a mesma postura
de negação ao diálogo, fingindo não entender o grito, foi o que fez
crescer o movimento contra os gastos da Copa e o apelo, enfim, pela
democracia.
O
momento, agora, na perspectiva dos trabalhadores e dos movimentos
sociais, é de explicitar, sem medo, toda essa conjuntura, que se tentou
mascarar pela fórmula da negação do conhecimento sobre o que estava
acontecendo, para que fique registrado que os problemas sociais ainda
persistem e que, portanto, a mobilização ainda tem razão de ser,
sobretudo para que nenhum ajuste de preservação de poder, como forma de
superação do momento de crise, seja feito de modo a, novamente,
prejudicar os trabalhadores, como se daria, por exemplo, com o
acolhimento de alguma das 101 (cento e uma) providências flexibilizantes
requeridas pela FIESP, com o não acolhimento da igualdade integral de
direitos trabalhistas aos empregados domésticos e, principalmente, com a
aprovação dos projetos de lei do ACE e da terceirização, perigo este
que se torna mais concreto principalmente agora que o anúncio da redução
da tarifa em São Paulo foi feito em uma coletiva com a presença do
Prefeito Haddad e do Governador Alckmin.
São Paulo, 19 de junho de 2013.
(*) Professor livre-docente do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP, Juiz do Trabalho e membro da Associação Juízes para a Democracia