Alexandre Morais da Rosa*
Perguntaram a um louco que havia perdido sua chave na floresta por que a procurava sob a luz do poste da rua, no que ele respondeu: aqui tem mais luz. Procurar flexibilizar as garantias constitucionais na perspectiva de resolver os problemas de Segurança Pública é buscar, como o louco, a chave no lugar errado.
O professor Jacinto de Miranda Coutinho há muito denuncia a maneira pela qual o discurso da eficiência, inclusive princípio constitucional, para os incautos de plantão, embrenhou-se pelo processo penal em busca da sumarização dos procedimentos, da redução do direito de defesa, dos recursos, enfim, ao preço da democracia. A razão eficiente que busca a condenação fast-food implicou nos últimos anos na “McDonaldização” do Direito Processual Penal: sentenças que são prolatadas no estilo “peça pelo número”. A estandardização da acusação, da instrução e da decisão. Tudo em nome de uma “McPena-Feliz”. Nada mais cínico e fácil de ser acolhido pelos atores jurídicos, de regra, “analfabetos funcionais”.
A primeira questão a ser enfrentada é a do “ator jurídico analfabeto funcional”, ou seja, ele sabe ler, escrever e fazer conta. Vai até à feira sozinho, mas é incapaz de realizar uma leitura compreensiva. Defasado filosófica e hermeneuticamente, consegue ler os códigos, mas precisa que alguém — no lugar do mestre — lhe indique o que é o certo. Sua biblioteca é composta, de regra, pela “Coleção Resumos”, um livro ultrapassado de Introdução ao Estudo de Direito — desses usados na maioria das graduações do país —, acompanhado da lamúria eterna de que o Direito é complexo, por isso é seduzido por autoajuda jurídica. Complementa o “kit nefelibata” — dos juristas que andam nas nuvens — com um CD de jurisprudência ou acesso aos sites de pesquisa jurisprudencial, negando-se compulsivamente a pensar.
O resultado disso é o que se vê: um deserto teórico no campo jurídico, em que cerca de 60%, sendo otimista, dos atores jurídicos são incapazes de compreender o que fazem. Para além da “opacidade do direito” (Carcova) e sua atmosférica mito-lógica (Warat), existe uma geleia de “atores jurídicos analfabetos funcionais”. Esses, por certo, não sabem compreender hermeneuticamente, porque para isso precisariam saber pelo menos do giro linguístico, isto é, deveriam superar a Filosofia da Consciência em favor da Filosofia da Linguagem. Seria pedir muito? Talvez. Mas é preciso entender que o sentido da norma jurídica (norma: regra + princípio) demanda um círculo hermenêutico (Heidegger e Gadamer), incompatível com os essencialismos ainda ensinados na graduação: vontade da norma e vontade do legislador, tão bem criticados pelo professor Lenio Streck.
No campo Direito e Processo Penal, a situação é patológica. É que as gerações antecedentes, a saber, os atuais atores jurídicos (professor, juiz, promotor, procurador, advogado, delegado etc), em grande parte, não sabem também compreender. São, na maioria, juristas analfabetos funcionais que pensam que pensam juridicamente e, não raro, ocupam as cátedras de ensino, incapazes, porque não dominam, de repassar uma cultura democrática. Esses, portanto, muitos de boa-fé, reconheço , acreditam que ensinam Direito, quando na verdade ensinam o estudante de Direito a fazer a “feira da jurisprudência” —mecanismo que significa encontrar uma decisão consolidada, remansosa, como gosta de dizer o “senso comum teórico dos juristas” (Warat).
De outro lado, embalados por modismos e propaganda ideológica — Direito Penal do Inimigo ou Teoria das Janelas Quebradas — importada do aplaudido primeiro mundo, servem a discursos que sequer entendem. Muitos nem leram: falam sem ler. Com estes ingredientes, facilmente instaura-se o processo penal de exceção, cujo fundamento de conter as mazelas sociais e brindar os privilegiados consumidores com segurança, encontra antecedente histórico nas ditaduras. Plenos poderes, apreensões de averiguação, prisão provisória de regra, tortura (psicológica, física e química), tudo passa a ser justificado em nome de um argumento cínico maior: o “bem comum”, consistente na segurança de todos, inclusive de quem está sendo apreendido e, eventualmente, excluído.
O Direito de Exceção, em nome do bem dos acusados, e antes da sociedade, suspende as garantias processuais, previstas na Constituição da República e nos Tratados de Direitos Humanos, por entender que elas são um entrave à redenção moral do infrator e à Segurança Coletiva. Embalados pela necessidade de conter a (criada) escalada de atos criminais, ou seja, a estrutura cria a exclusão e depois sorri propondo a exclusão novamente, via sistema penal, e os excelentes funcionários públicos nefelibatas — tal qual Eichmann —, na melhor expressão kantiana, cumprem suas funções, sem limites. A construção fomentada e artificial de um estado de risco, adubada pelo medo, faz com o que o discurso se autorize, em face das ditas necessidades, a suspender o Estado Democrático de Direito, promovendo uma incisão de emergência e total.
O Direito Penal, no projeto neoliberal, possui papel fundamental na manutenção do sistema, eis que mediante a (dita) legitimação do uso da coerção, impõe a exclusão do mundo da vida com sujeitos engajados no projeto social-jurídico naturalizado, sem que se deem conta de seus verdadeiros papéis sociais. Acredita-se que se é um excepcional funcionário público, tal qual Eichmann (em Jerusalém). Ou seja, um sujeito cuja normalidade indicava a “Normalpatia” apontada por L.F. Barros no seu excesso patológico. Essa submissão alienada é vivenciada dramaticamente pelos metidos no processo penal. O discurso do ‘determinismo positivista’ é realimentado em face das condicionantes sociais, reeditando a necessidade de ‘tutelar’ os desviantes — consumidores falhos, “lixo humano”, como se refere Bauman — mediante prevenção, repressão e terapia. O Estado Intervencionista da ‘Nova Escola Penal’ está de volta na sua missão de defender os cidadãos ‘bons e sadios’ dos ‘maus e doentes’, desenterrando o discurso etiológico, perfeitamente conveniente para mídia e para classe dominante. Sob o mote de curar ao mal, tendo a sociedade como um organismo vivo, na perspectiva de uma vida social sadia, a violência oficial se mostra mais do que justificada: é necessária à sobrevivência social, ainda mais contra o terrorista social.
As vidas que se escondem nos processos penais, na sua grande maioria, são irreais para os promotores, advogados e juízes que assistem como se fosse mais um filme de mau-gosto, protagonizado por artistas que não merecem o papel. Deveriam ser retirados de cena. E são! É preciso retornar ao que Zizek aponta como o “Deserto do Real”, saindo do semblante do universo processual artificial construído para que possamos, como jogadores do processo, esquecer que existem pessoas morrendo. Gente. Como qualquer um interveniente do processo. Mas como não se consegue ter a dimensão do que acontece, dado que o semblante da ficção e suas verdades — para alguns, real — ocupa o lugar do que se passa. Esse discernimento entre o real e o ficcional é o desafio num mundo sem perspectivas que não o shopping center.
Esses dias, um amigo, pessoa do povo, perguntou-me porque quem é preso em flagrante não vai direto cumprir pena? Por que o processo? Respondi que estamos, ainda, numa democracia em que o processo como procedimento em contraditório (Fazzalari) é o mecanismo democrático para se apurar a responsabilidade de alguém. Ele me respondeu que não precisa. Entendi a posição dele, até porque homem pragmático e do senso comum. No Brasil, essa posição de execução antecipada, embora vedada pela Constituição, continua sendo a prática. Basta perceber que se converte flagrante formalmente em diversas comarcas, nega-se a soltura de meros conduzidos com as justificativas mais loucas, tudo em nome da paz da sociedade. Isto bem demonstra a estrutura inquisitória do sistema processual penal brasileiro que mantém a pose democrática, mas exerce a mais violenta forma de sequestro preliminar da liberdade.
Todavia, quem respira um pouco de oxigênio democrático, sabe que somente o processo pode fazer ceder, via decisão transitada em julgado, a muralha da presunção de inocência, justamente porque é a Jurisdição a única que pode assim proceder. Mostra-se intolerável que as pessoas fiquem presas sem culpa, sem processo, presas pelo que são e não pelo que fizeram, em processos decorrentes de “furtos de moinhos de ventos”. O processo precisa de tempo. E tempo é dinheiro. No mundo da eficiência, todavia, quer-se condenações no melhor estilo dos tribunais nazistas. Imediatamente. Sem direito de defesa e transmitidas ao vivo, com patrocinadores a peso de ouro e muita audiência: plim-plim. A fórmula é a de sempre. Juvenal dizia: pão e circo. E quando acontecem prisões/condenações como a de Zé Dirceu e/ou Paulo Maluf a coisa fica pior. Isso porque a esquerda punitiva é caolha, bem sabe Maria Lúcia Karam, não se dando conta de que relegitima o sistema penal, indica Juarez Cirino dos Santos. “Agora até o fulano vai preso”. E se “ele” vai preso, com mais razão o “ladrãozinho” de frango de televisão de cachorro também. Inverte-se a lógica em nome do bem e do justo. Lugar sempre empulhador.
Alguma coisa anda fora da ordem, dizia Caetano há um tempo. Hoje as coisas já estão dentro da nova ordem neoliberal mundial, inclusive o processo penal: sumário, eficiente. Números, eficiência, empulhação... Para que direito de defesa se tenho que baixar o meu mapa? Para que ouvir de testemunhas se o processo vai ficar no mapa? O juiz astrólogo: só quer saber de mapa. Ainda mais quando depende da produtividade para conseguir promoção ou evitar punição!
O Processo Penal Democrático, assim, parafraseando Dworkin, precisa ser levado a sério. O problema fundamental reside no fato de que a justificativa para a exceção encontra-se encoberta ideologicamente. Acredita-se, muito de boa-fé, a maioria, de que se está realizando o bem. Salvando a sociedade de um “terrorista social”. Esqueceu-se de que para o uso do poder existem pelo menos dois limites: o processo e o ético (Dussel). Exercer uma parcela do poder em face dos acusados é muito mais tranquilo para os kantianos de sempre, fiéis cumpridores das normas jurídicas, sejam elas quais forem. Os “acusados-terroristas-sociais” passam a ser uma das faces da vida nua, isto é, “homo sacer”, a que é matável, mas não sacrificável. Assim, os rostos do poder encontram-se maleáveis, mutantes, em torno de um lugar pensado para não pensar, mas para cumprir acriticamente.
Os soldados juízes estão aí para aplicar a regra, numa filosofia de “Cruz Vermelha” (Cyro Marcos da Silva), rumo à salvação eficiente das almas destes pobres de espírito. Até quando viverão felizes para sempre? Rever e compreender a mirada é o desafio, sempre. A tarefa, percebe-se, não é singela, mormente porque é necessário abjurar o que se acreditou com tanta fé, além de se expor à crítica virulenta dos iludidos de sempre, cujo véu moral cega qualquer pretensão democrática, já que acreditam — o Imaginário deslizando — estar comprando um lugar no céu, na Ilha dos Abençoados. Não se pode ter medo de resistir. É preciso resgatar a Constituição Originária, na linha de Paulo Bonavides, exercitar o controle de constitucionalidade difuso e deixar de fazer como todo mundo faz. Porque assistir de camarote o que se passa com as vítimas do sistema penal não exclui nossa responsabilidade ética com as mortes: somos coautores, do nosso lugar, por omissão. Por isso que ao se defender garantias constitucionais, hoje, o sujeito pode ser preso em flagrante, sem liberdade provisória diante dos “maus antecedentes”...
Quando Georg Lukács foi preso, o policial perguntou se estava armado, tendo este lhe entregue calmamente a caneta. É preciso que as canetas pesem democraticamente, mediante processo penal garantista (Ferrajoli) a partir da teoria dos jogos. Ao final se pode, dizer, de qualquer forma: amo muito tudo isso!
* Juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC, membro da Associação Juízes para a Democracia