Almiro Eduardo de Almeida*
Fazendo as audiências de hoje
(19/11/2013) deparei-me com mais uma daquelas que a gente não sabe
como qualificar...
Figurava como reclamada a empresa de
televisão Guaíba. Dentre os inúmeros pedidos, o reclamante
postulava indenização por danos morais sob a alegação de que era
ofendido e ameaçado por seu superior hierárquico – algo,
infelizmente, normal e corriqueiro nos processos trabalhistas (a
redundância é proposital). O pedido de indenização tinha,
entretanto, outro fundamento fático: o fato de o reclamante
trabalhar “em áreas perigosas, em que havia risco de vida, devido
às filmagens jornalísticas em vilas e favelas onde há ‘bocas de
fumo’ do tráfico de drogas, áreas de roubos e furtos, e em todos
os locais onde há envolvimento com detentos, marginais e
delinquentes, com tiroteios, perseguições, brigas e conflitos”.
Em contestação, a reclamada
(obviamente) nega os fatos e argumenta: “É do autor o ônus de
comprovar suas alegações que, só pelo argumento de que trabalhava
em vilas e favelas, locais com risco de vida, e que por tal fato
faria jus à indenização por dano moral, já é suficiente para
demonstrar que são totalmente infundadas e verídicas”... seja lá
o que isso queira dizer!
Em audiência, a discussão passou a
girar em torno do fato de a reclamada fornecer ou não coletes à
prova de bala aos seus empregados. As testemunhas do reclamante
diziam que havia apenas dois coletes na empresa; as da reclamada que
havia 8, 10 ou “uma dúzia”. Àquele momento, restava
demonstrado, pelos depoimentos, que a empresa contava com onze
equipes de “externas”, cada qual com três empregados (um
auxiliar de repórter cinematográfico – que acumulava a função
de motorista –, um reporter e um cinegrafista), totalizando, assim,
trinta e três empregados envolvidos com as tais das “externas”.
Sabe-se que pauta jornalística da
reclamada, adquirida já há alguns anos pela Rede Record de
Televisão, é quase que exclusivamente “na linha policial”, como
informaram as testemunhas (sei que deveria ter indeferido a prova
nesse sentido, por se tratar de fato notório, mas não resisti).
Sendo assim, é mais do que certo que, ainda que houvesse doze, ou
até mesmo vinte e quatro coletes à prova de bala, não haveria
proteção suficiente para todos os trabalhadores potencialmente
envolvidos em tiroteios.
Nesse ponto, surge a estratégia da
defesa: à pergunta da procuradora da reclamada sobre quem
acompanhava as filmagens nos locais mais perigosos, a testemunha
(trazida pela ré) responde – “existe
um cinegrafista terceirizado pela empresa para fazer imagens
policiais”!!!
A audiência poderia ter acabado
naquele momento, assim como este texto poderia acabar aqui.
Entretanto, se aquela continuou por insistência dos advogados, este
continua por insistência de quem o escreve. Insistência que se soma
às inúmeras denúncias que já foram feitas contra a precarização
das relações de trabalho decorrentes da tercerização.
Além das tradicionais formas já
conhecidas, tais como o excesso de trabalho acompanhado da
progressiva redução de salários, o esvaziamento da atuação dos
sindicatos e a consequente perda de direitos, o expressivo aumento do
número de acidentes de trabalho e/ou doenças profissionais, agora a
terceirização permite uma nova “estratégia
de administração da empresa”:
– “colocamos nossos trabalhadores
na linha de tiro e não há coletes ‘salva-vidas’ para todos?
terceirizemos!”
A solução parece ser perfeita. Já
que o terceirizado deve ser um trabalhador invisível – até para
não restar caracterizada a tal da pessoalidade, que permitiria que
algum juiz desavisado entendesse que empregador é quem
efetivamente emprega – ninguém melhor do que ele, o
trabalhador terceirizado, para ficar na linha de tiro sem colete.
* Juiz do Trabalho no RS e membro da Associação Juízes para a Democracia