sexta-feira, 7 de março de 2014

Intolerância, por João Marcos Buch*

-Ele está rendido – eu repetia em voz alta. Era manhã de sábado, do carro tinha visto um rapaz entrando numa farmácia, anunciando assalto. Simulava estar armado (não estava). Imediatamente, liguei para a polícia. Enquanto aguardava, vi alguns homens adentrando no estabelecimento. Após alguns segundos, tiraram o rapaz, imobilizado. Embora a recomendação seja jamais tentar conter um assalto e esperar a polícia, o assaltante estava contido. Pensei, então, que tudo havia terminado bem. Estava errado. Um princípio de barbárie começou, com chutes no rapaz inconsciente, estendido na calçada. Avancei com o carro sobre a calçada, saí e lancei uma palavra de ordem.

– Ele está rendido. Todos se afastaram, alguns ao longe faziam sinal de aprovação, mas os demais estavam inconformados.

– Você não viu o que ele fez? – perguntavam.

– Vi, mas agora ele está rendido – repetia esta frase para chamar à razão aquelas pessoas. Finalmente, a polícia chegou. Relatei o ocorrido, da tentativa de assalto às agressões, e recomendei que levassem o assaltante ao pronto-socorro e, após, à delegacia para lavratura do auto de prisão em flagrante. Fui embora preocupado, não só com a situação das vítimas da farmácia, já amparadas, mas também com o que poderia ter acontecido com o rapaz.

A questão é: por que a barbárie? E por parte de pessoas que, em tese, são cumpridoras de suas obrigações e se importam com a paz. Talvez a resposta seja um conjunto de fatores. Todos nós, com alguma estabilidade, muitas vezes somos maniqueístas e não nos damos conta de que as oportunidades que temos para crescer pelo trabalho e estudo não existem para uma grande massa populacional. Por isso, não nos reconhecemos no outro.

Já a educação tem falhado em despertar no jovem a alteridade e a compreensão do contexto histórico em que se encontra. E as instituições públicas vêm se enfraquecendo, seja pela ausência de políticas de inclusão econômica e social, seja pela falta de gestão e capacidade administrativa. O resultado é um retrocesso à barbárie. A missão que temos é modificar isso. É fazer com que as pessoas tenham oportunidades para crescer, passem a acreditar em seus representantes públicos e busquem as instituições sempre que se vejam em situação precária. Ao Estado, resta comprometer-se efetivamente com as pessoas, num processo político ético. As vítimas da farmácia e a vítima da injustiça pelas próprias mãos agradeceriam.
*JUIZ DE DIREITO DA VARA DE EXECUÇÕES PENAIS E CORREGEDOR DO SISTEMA PRISIONAL DA COMARCA DE JOINVILLE E MEMBRO DA AJD

Fonte: Jornal A Notícia de 07/03/2014

Conversa com o lixeiro - Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Tormenta e coragem, por João Marcos Buch*

Numa tórrida manhã de janeiro, estava eu no presidio, tratando com os detentos assuntos variados – informação sobre processos, penas e pedidos gerais de melhorias, como fornecimento de água, produtos de higiene, saneamento e colchões. São pessoas que perderam a liberdade, mas que nunca perderam o caráter humano e que devem ser respeitadas na sua integridade. Depois, retornei ao Fórum, onde o trabalho em dobro esperava, tanto nos processos quanto na busca das autoridades públicas responsáveis pela grave situação.
Na manhã seguinte, estive na Polícia Militar, numa aula para soldados em formação. A turma era compenetrada, atenciosa. Tratei de direitos fundamentais e segurança pública. Depois da preleção, questionamentos: por que pessoas presas muitas vezes são encontradas livres logo em seguida? Por que a violência urbana aumenta? Quais os limites da atuação policial? Creio que consegui me fazer compreender. Não é porque as prisões estão um caos, pela falta de uma política de Estado profícua e transparente, que não se deva, dentro da lei, prender quem esteja em flagrante delito. Porém, sempre e sempre devem ser respeitadas as garantias constitucionais. 

Duas manhãs, dois mundos. O ser humano continua existindo atrás das grades. Quando adentro nas entranhas das prisões, consigo sentir o que significa viver ou trabalhar nelas. Tenho, então, a breve noção do terror que é boa parte do sistema carcerário. Nesse mundo, vive-se em estado de exceção, com detentos ávidos por trabalho, por estudo, por liberdade, mas largados à própria sorte, sujeitos à cooptação de facções criminosas. Isso sem esquecer dos agentes penitenciários, que pouco podem, pois não valorizados e não reconhecidos. Já no outro mundo, o Estado é presente, com soldados disciplinados, engajados. Os policiais, como todos, estão sujeitos a acertos e erros. Muitas vezes, quando tudo o mais deu errado, acabam ficando na linha de frente para proteger as pessoas. Como deve ser difícil raciocinar e ter sempre a consciência de que sua missão é garantir as liberdades públicas e a segurança de todos, independentemente de qual lado da linha estejam as pessoas. Dois mundos interdependentes. O desafio é equacionar esses dois lados. Quanto mais liberdade, menos segurança. Quanto mais segurança, menos liberdade. Liberdade sem segurança é utópico. Segurança sem liberdade é tirania. Que esses mundos saibam que pertencem à mesma raça, a raça humana, num padrão de civilidade que não admite mais retrocessos. Liberdade e segurança todos desejam. (p.8)


*Juiz de direito da Vara de Execuções Penais, corregedor do sistema prisional de Joinville, membro da Associação Juízes para a Democracia


Fonte: Jornal A Notícia de 07/02/2014  (http://www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a4412145.xml&template=4187.dwt&edition=23684&section=2479)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Projeto cinema no presídio, por Alessandro da Silva*

Recentemente passou em nossos cinemas o filme Hannah Arendt, que mostra um episódio que marcou a vida da filósofa alemã. Ela cobriu para a revista New Yorquer, em Jerusalém, o julgamento do nazista Adolf Eichmann, capturado pela polícia secreta israelense em Buenos Aires, acusado de crimes no genocídio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Após intensa observação e reflexão, ela concluiu que Eichmann não era um monstro, mas apenas um funcionário a cumprir burocraticamente suas obrigações. Ele perdeu a condição de ser humano quando parou de pensar acerca da natureza de suas ações, momento em que se deu a "banalização do mal".
Guardadas as devidas proporções, nosso país também vive uma situação de banalização da violência, não só a decorrente da criminalidade, mas também a cometida em nome do Estado. Em Santa Catarina são rotineiras as denúncias de tortura e maus tratos executados no sistema penitenciário. Em pouco mais de dez anos o estado passou de exemplo na recuperação de menores infratores a contumaz violador dos direitos humanos.
Na contracorrente, o Juiz da Vara de Execuções Penais de Joinville, João Marcos Buch, editou uma portaria para determinar que mensalmente os presos participem de sessões de cinema, no próprio presídio. Ele acredita que a arte pode sensibilizar e transformar o ser humano.
O problema é que a Procuradoria Geral do Estado disse que o projeto é uma “extravagância”. Tal qual Eichmann, eles acham que existem procedimentos a serem observados e que o juiz teria ultrapassado suas atribuições. Então, requereram ao Tribunal de Justiça a anulação da portaria, de maneira a garantir que a burocracia continue a desumanização do sistema prisional.
Nesta altura, talvez seja o momento de pensarmos no projeto “Cinema nos Gabinetes”.

* Juiz do Trabalho, membro da Associação Juízes para a Democracia 

Fonte: Jornal Diário Catarinense de 13/12/2013.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

TERCEIRIZAÇÃO NA LINHA DE TIRO

  Almiro Eduardo de Almeida*
Fazendo as audiências de hoje (19/11/2013) deparei-me com mais uma daquelas que a gente não sabe como qualificar...
Figurava como reclamada a empresa de televisão Guaíba. Dentre os inúmeros pedidos, o reclamante postulava indenização por danos morais sob a alegação de que era ofendido e ameaçado por seu superior hierárquico – algo, infelizmente, normal e corriqueiro nos processos trabalhistas (a redundância é proposital). O pedido de indenização tinha, entretanto, outro fundamento fático: o fato de o reclamante trabalhar “em áreas perigosas, em que havia risco de vida, devido às filmagens jornalísticas em vilas e favelas onde há ‘bocas de fumo’ do tráfico de drogas, áreas de roubos e furtos, e em todos os locais onde há envolvimento com detentos, marginais e delinquentes, com tiroteios, perseguições, brigas e conflitos”.
Em contestação, a reclamada (obviamente) nega os fatos e argumenta: “É do autor o ônus de comprovar suas alegações que, só pelo argumento de que trabalhava em vilas e favelas, locais com risco de vida, e que por tal fato faria jus à indenização por dano moral, já é suficiente para demonstrar que são totalmente infundadas e verídicas”... seja lá o que isso queira dizer!
Em audiência, a discussão passou a girar em torno do fato de a reclamada fornecer ou não coletes à prova de bala aos seus empregados. As testemunhas do reclamante diziam que havia apenas dois coletes na empresa; as da reclamada que havia 8, 10 ou “uma dúzia”. Àquele momento, restava demonstrado, pelos depoimentos, que a empresa contava com onze equipes de “externas”, cada qual com três empregados (um auxiliar de repórter cinematográfico – que acumulava a função de motorista –, um reporter e um cinegrafista), totalizando, assim, trinta e três empregados envolvidos com as tais das “externas”.
Sabe-se que pauta jornalística da reclamada, adquirida já há alguns anos pela Rede Record de Televisão, é quase que exclusivamente “na linha policial”, como informaram as testemunhas (sei que deveria ter indeferido a prova nesse sentido, por se tratar de fato notório, mas não resisti). Sendo assim, é mais do que certo que, ainda que houvesse doze, ou até mesmo vinte e quatro coletes à prova de bala, não haveria proteção suficiente para todos os trabalhadores potencialmente envolvidos em tiroteios.
Nesse ponto, surge a estratégia da defesa: à pergunta da procuradora da reclamada sobre quem acompanhava as filmagens nos locais mais perigosos, a testemunha (trazida pela ré) responde – “existe um cinegrafista terceirizado pela empresa para fazer imagens policiais”!!!
A audiência poderia ter acabado naquele momento, assim como este texto poderia acabar aqui. Entretanto, se aquela continuou por insistência dos advogados, este continua por insistência de quem o escreve. Insistência que se soma às inúmeras denúncias que já foram feitas contra a precarização das relações de trabalho decorrentes da tercerização.
Além das tradicionais formas já conhecidas, tais como o excesso de trabalho acompanhado da progressiva redução de salários, o esvaziamento da atuação dos sindicatos e a consequente perda de direitos, o expressivo aumento do número de acidentes de trabalho e/ou doenças profissionais, agora a terceirização permite uma nova “estratégia de administração da empresa”:
– “colocamos nossos trabalhadores na linha de tiro e não há coletes ‘salva-vidas’ para todos? terceirizemos!”
A solução parece ser perfeita. Já que o terceirizado deve ser um trabalhador invisível – até para não restar caracterizada a tal da pessoalidade, que permitiria que algum juiz desavisado entendesse que empregador é quem efetivamente emprega – ninguém melhor do que ele, o trabalhador terceirizado, para ficar na linha de tiro sem colete.
 * Juiz do Trabalho no RS e membro da Associação Juízes para a Democracia

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

McDonaldização do Processo Penal e analfabetos funcionais

Alexandre Morais da Rosa*
Perguntaram a um louco que havia perdido sua chave na floresta por que a procurava sob a luz do poste da rua, no que ele respondeu: aqui tem mais luz. Procurar flexibilizar as garantias constitucionais na perspectiva de resolver os problemas de Segurança Pública é buscar, como o louco, a chave no lugar errado.
O professor Jacinto de Miranda Coutinho há muito denuncia a maneira pela qual o discurso da eficiência, inclusive princípio constitucional, para os incautos de plantão, embrenhou-se pelo processo penal em busca da sumarização dos procedimentos, da redução do direito de defesa, dos recursos, enfim, ao preço da democracia. A razão eficiente que busca a condenação fast-food implicou nos últimos anos na “McDonaldização” do Direito Processual Penal: sentenças que são prolatadas no estilo “peça pelo número”. A estandardização da acusação, da instrução e da decisão. Tudo em nome de uma “McPena-Feliz”. Nada mais cínico e fácil de ser acolhido pelos atores jurídicos, de regra, “analfabetos funcionais”.
A primeira questão a ser enfrentada é a do “ator jurídico analfabeto funcional”, ou seja, ele sabe ler, escrever e fazer conta. Vai até à feira sozinho, mas é incapaz de realizar uma leitura compreensiva. Defasado filosófica e hermeneuticamente, consegue ler os códigos, mas precisa que alguém — no lugar do mestre — lhe indique o que é o certo. Sua biblioteca é composta, de regra, pela “Coleção Resumos”, um livro ultrapassado de Introdução ao Estudo de Direito — desses usados na maioria das graduações do país —, acompanhado da lamúria eterna de que o Direito é complexo, por isso é seduzido por autoajuda jurídica. Complementa o “kit nefelibata” — dos juristas que andam nas nuvens — com um CD de jurisprudência ou acesso aos sites de pesquisa jurisprudencial, negando-se compulsivamente a pensar.
O resultado disso é o que se vê: um deserto teórico no campo jurídico, em que cerca de 60%, sendo otimista, dos atores jurídicos são incapazes de compreender o que fazem. Para além da “opacidade do direito” (Carcova) e sua atmosférica mito-lógica (Warat), existe uma geleia de “atores jurídicos analfabetos funcionais”. Esses, por certo, não sabem compreender hermeneuticamente, porque para isso precisariam saber pelo menos do giro linguístico, isto é, deveriam superar a Filosofia da Consciência em favor da Filosofia da Linguagem. Seria pedir muito? Talvez. Mas é preciso entender que o sentido da norma jurídica (norma: regra + princípio) demanda um círculo hermenêutico (Heidegger e Gadamer), incompatível com os essencialismos ainda ensinados na graduação: vontade da norma e vontade do legislador, tão bem criticados pelo professor Lenio Streck.
No campo Direito e Processo Penal, a situação é patológica. É que as gerações antecedentes, a saber, os atuais atores jurídicos (professor, juiz, promotor, procurador, advogado, delegado etc), em grande parte, não sabem também compreender. São, na maioria, juristas analfabetos funcionais que pensam que pensam juridicamente e, não raro, ocupam as cátedras de ensino, incapazes, porque não dominam, de repassar uma cultura democrática. Esses, portanto, muitos de boa-fé, reconheço , acreditam que ensinam Direito, quando na verdade ensinam o estudante de Direito a fazer a “feira da jurisprudência” —mecanismo que significa encontrar uma decisão consolidada, remansosa, como gosta de dizer o “senso comum teórico dos juristas” (Warat).
De outro lado, embalados por modismos e propaganda ideológica — Direito Penal do Inimigo ou Teoria das Janelas Quebradas — importada do aplaudido primeiro mundo, servem a discursos que sequer entendem. Muitos nem leram: falam sem ler. Com estes ingredientes, facilmente instaura-se o processo penal de exceção, cujo fundamento de conter as mazelas sociais e brindar os privilegiados consumidores com segurança, encontra antecedente histórico nas ditaduras. Plenos poderes, apreensões de averiguação, prisão provisória de regra, tortura (psicológica, física e química), tudo passa a ser justificado em nome de um argumento cínico maior: o “bem comum”, consistente na segurança de todos, inclusive de quem está sendo apreendido e, eventualmente, excluído.
O Direito de Exceção, em nome do bem dos acusados, e antes da sociedade, suspende as garantias processuais, previstas na Constituição da República e nos Tratados de Direitos Humanos, por entender que elas são um entrave à redenção moral do infrator e à Segurança Coletiva. Embalados pela necessidade de conter a (criada) escalada de atos criminais, ou seja, a estrutura cria a exclusão e depois sorri propondo a exclusão novamente, via sistema penal, e os excelentes funcionários públicos nefelibatas — tal qual Eichmann —, na melhor expressão kantiana, cumprem suas funções, sem limites. A construção fomentada e artificial de um estado de risco, adubada pelo medo, faz com o que o discurso se autorize, em face das ditas necessidades, a suspender o Estado Democrático de Direito, promovendo uma incisão de emergência e total.
O Direito Penal, no projeto neoliberal, possui papel fundamental na manutenção do sistema, eis que mediante a (dita) legitimação do uso da coerção, impõe a exclusão do mundo da vida com sujeitos engajados no projeto social-jurídico naturalizado, sem que se deem conta de seus verdadeiros papéis sociais. Acredita-se que se é um excepcional funcionário público, tal qual Eichmann (em Jerusalém). Ou seja, um sujeito cuja normalidade indicava a “Normalpatia” apontada por L.F. Barros no seu excesso patológico. Essa submissão alienada é vivenciada dramaticamente pelos metidos no processo penal. O discurso do ‘determinismo positivista’ é realimentado em face das condicionantes sociais, reeditando a necessidade de ‘tutelar’ os desviantes — consumidores falhos, “lixo humano”, como se refere Bauman — mediante prevençãorepressão e terapia. O Estado Intervencionista da ‘Nova Escola Penal’ está de volta na sua missão de defender os cidadãos ‘bons e sadios’ dos ‘maus e doentes’, desenterrando o discurso etiológico, perfeitamente conveniente para mídia e para classe dominante. Sob o mote de curar ao mal, tendo a sociedade como um organismo vivo, na perspectiva de uma vida social sadia, a violência oficial se mostra mais do que justificada: é necessária à sobrevivência social, ainda mais contra o terrorista social.
As vidas que se escondem nos processos penais, na sua grande maioria, são irreais para os promotores, advogados e juízes que assistem como se fosse mais um filme de mau-gosto, protagonizado por artistas que não merecem o papel. Deveriam ser retirados de cena. E são! É preciso retornar ao que Zizek aponta como o “Deserto do Real”, saindo do semblante do universo processual artificial construído para que possamos, como jogadores do processo, esquecer que existem pessoas morrendo. Gente. Como qualquer um interveniente do processo. Mas como não se consegue ter a dimensão do que acontece, dado que o semblante da ficção e suas verdades — para alguns, real — ocupa o lugar do que se passa. Esse discernimento entre o real e o ficcional é o desafio num mundo sem perspectivas que não o shopping center.
Esses dias, um amigo, pessoa do povo, perguntou-me porque quem é preso em flagrante não vai direto cumprir pena? Por que o processo? Respondi que estamos, ainda, numa democracia em que o processo como procedimento em contraditório (Fazzalari) é o mecanismo democrático para se apurar a responsabilidade de alguém. Ele me respondeu que não precisa. Entendi a posição dele, até porque homem pragmático e do senso comum. No Brasil, essa posição de execução antecipada, embora vedada pela Constituição, continua sendo a prática. Basta perceber que se converte flagrante formalmente em diversas comarcas, nega-se a soltura de meros conduzidos com as justificativas mais loucas, tudo em nome da paz da sociedade. Isto bem demonstra a estrutura inquisitória do sistema processual penal brasileiro que mantém a pose democrática, mas exerce a mais violenta forma de sequestro preliminar da liberdade.
Todavia, quem respira um pouco de oxigênio democrático, sabe que somente o processo pode fazer ceder, via decisão transitada em julgado, a muralha da presunção de inocência, justamente porque é a Jurisdição a única que pode assim proceder. Mostra-se intolerável que as pessoas fiquem presas sem culpa, sem processo, presas pelo que são e não pelo que fizeram, em processos decorrentes de “furtos de moinhos de ventos”. O processo precisa de tempo. E tempo é dinheiro. No mundo da eficiência, todavia, quer-se condenações no melhor estilo dos tribunais nazistas. Imediatamente. Sem direito de defesa e transmitidas ao vivo, com patrocinadores a peso de ouro e muita audiência: plim-plim. A fórmula é a de sempre. Juvenal dizia: pão e circo. E quando acontecem prisões/condenações como a de Zé Dirceu e/ou Paulo Maluf a coisa fica pior. Isso porque a esquerda punitiva é caolha, bem sabe Maria Lúcia Karam, não se dando conta de que relegitima o sistema penal, indica Juarez Cirino dos Santos. “Agora até o fulano vai preso”. E se “ele” vai preso, com mais razão o “ladrãozinho” de frango de televisão de cachorro também. Inverte-se a lógica em nome do bem e do justo. Lugar sempre empulhador.
Alguma coisa anda fora da ordem, dizia Caetano há um tempo. Hoje as coisas já estão dentro da nova ordem neoliberal mundial, inclusive o processo penal: sumário, eficiente. Números, eficiência, empulhação... Para que direito de defesa se tenho que baixar o meu mapa? Para que ouvir de testemunhas se o processo vai ficar no mapa? O juiz astrólogo: só quer saber de mapa. Ainda mais quando depende da produtividade para conseguir promoção ou evitar punição!
O Processo Penal Democrático, assim, parafraseando Dworkin, precisa ser levado a sério. O problema fundamental reside no fato de que a justificativa para a exceção encontra-se encoberta ideologicamente. Acredita-se, muito de boa-fé, a maioria, de que se está realizando o bem. Salvando a sociedade de um “terrorista social”. Esqueceu-se de que para o uso do poder existem pelo menos dois limites: o processo e o ético (Dussel). Exercer uma parcela do poder em face dos acusados é muito mais tranquilo para os kantianos de sempre, fiéis cumpridores das normas jurídicas, sejam elas quais forem. Os “acusados-terroristas-sociais” passam a ser uma das faces da vida nua, isto é, “homo sacer”, a que é matável, mas não sacrificável. Assim, os rostos do poder encontram-se maleáveis, mutantes, em torno de um lugar pensado para não pensar, mas para cumprir acriticamente.
Os soldados juízes estão aí para aplicar a regra, numa filosofia de “Cruz Vermelha” (Cyro Marcos da Silva), rumo à salvação eficiente das almas destes pobres de espírito. Até quando viverão felizes para sempre? Rever e compreender a mirada é o desafio, sempre. A tarefa, percebe-se, não é singela, mormente porque é necessário abjurar o que se acreditou com tanta fé, além de se expor à crítica virulenta dos iludidos de sempre, cujo véu moral cega qualquer pretensão democrática, já que acreditam — o Imaginário deslizando — estar comprando um lugar no céu, na Ilha dos Abençoados. Não se pode ter medo de resistir. É preciso resgatar a Constituição Originária, na linha de Paulo Bonavides, exercitar o controle de constitucionalidade difuso e deixar de fazer como todo mundo faz. Porque assistir de camarote o que se passa com as vítimas do sistema penal não exclui nossa responsabilidade ética com as mortes: somos coautores, do nosso lugar, por omissão. Por isso que ao se defender garantias constitucionais, hoje, o sujeito pode ser preso em flagrante, sem liberdade provisória diante dos “maus antecedentes”...
Quando Georg Lukács foi preso, o policial perguntou se estava armado, tendo este lhe entregue calmamente a caneta. É preciso que as canetas pesem democraticamente, mediante processo penal garantista (Ferrajoli) a partir da teoria dos jogos. Ao final se pode, dizer, de qualquer forma: amo muito tudo isso!
* Juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC, membro da Associação Juízes para a Democracia

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Idade penal, por Iolmar Alves Baltazar*


Grande parte da sociedade clama pela redução da maioridade penal em nome de uma pretensa justiça. Ocorre que rebaixar a idade penal não reduzirá a violência totalmente considerada, como bem destacou Marcus Vinicius Coêlho, presidente do Conselho Federal da OAB. A proposta evidencia forma de exclusão social seletiva.

A violência possui múltiplas expressões e perpassa pela acentuada desigualdade social. Em países onde não há considerável desnível socieconômico os índices de criminalidade são baixos. Forçoso reconhecer que a criminalidade urbana também é efeito da violência. Uma proposta sustentável, portanto, precisa priorizar o desenvolvimento socialmente includente.

A criminalização de adolescentes sem que haja substancial melhoria na prestação de direitos fundamentais, principalmente educação, saúde, profissionalização, convivência familiar e comunitária, apenas agravará ainda mais o problema, colocando imensa massa de jovens no desumano sistema carcerário, caracterizado por 70% de reincidência.

O Brasil é o quarto país que mais aprisiona no mundo. Reduzir a idade penal sem que antes hajam sido efetivados o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, apenas falseia a realidade e afasta o Estado do compromisso com políticas públicas prioritárias na área da infância e da juventude. O Conselho Federal de Psicologia, a propósito, divulgou campanha no sentido de que "o futuro do Brasil não merece cadeia".

A maioridade penal aos 18 anos é cláusula petrificada na Constituição, não podendo ser alterada nem por emenda constitucional. À luz do controle de convencionalidade das leis, está de acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 1990.


* Juiz de Direito, membro da Associação Juízes para a Democracia

Fonte: Jornal Diário Catarinense de 19/10/2013