quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Número de acidentes de trabalho sobe 27,6% de 2006 para 2007

Anuário Estatístico de 2007 do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) registrou 653 mil acidentes de trabalho. Mato Grosso ocupa o 1º lugar na média relativa, com 47,26 mortes por acidente para cada 100 mil segurados

Por Bianca Pyl

O número de acidentes de trabalho aumentou 27,6% em 2007, comparado com o ano anterior. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) registrou 653 mil ocorrências, segundo dados do Anuário Estatístico de 2007. O maior impacto deste aumento (98,6%) diz respeito aos acidentes sem Comunicações de Acidentes de Trabalho (CATs), registrados por meio do nexo técnico epidemiológico - mecanismo que relaciona doenças que ocorrem com maior incidência às atividades profissionais. Os acidentes de trabalho registrados em 2007, por meio da CAT, aumentaram 3,7% em relação a 2006.

No ano passado, foram registradas 2,8 mil mortes por acidentes do trabalho em todo o país. "No caso dos acidentes fatais, o nexo técnico epidemiológico não interfere", explica Fernando Donato Vasconcelos, médico e auditor fiscal da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Mato Grosso (SRTE/MT). A nova metodologia não se aplica aos trabalhadores informais e só abrange o universo dos segurados pelo INSS.

Segundo ele, a caracterização do acidente envolve dificuldades na delimitação do que é o fator de risco ou causal, suas circunstâncias de ocorrência e a relação com o trabalho. Por isso, os números podem ser ainda maiores em função da subnotificação. "Comparando as estatísticas da Previdência Social com dados de Boletins de Ocorrência nos distritos policiais, por exemplo, temos níveis de subnotificação de cerca de 90%. Ou seja, a realidade de acidentes do trabalho é muito pior do que aparece nos dados oficiais".

Dados do governo federal mostram que acidentes e doenças do trabalho custam, anualmente, R$ 10,7 bilhões aos cofres da Previdência Social, responsável pelo pagamento do auxílio-doença, auxílio-acidente e aposentadorias.

Prioridade e planejamento
Para Fernando Donato, a primeira medida para diminuir o alto índice de acidentes repousa na priorização da questão dentro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). "O problema não é novo. As iniciativas para combatê-lo foram se perdendo ao longo dos anos. Antigamente a segurança e saúde do trabalhador era uma secretaria dentro do MTE. Atualmente há um número pequeno de auditores especialistas no tema. Os recursos são limitados".

Para Junia Barreto, diretora do Departamento de Segurança e Saúde do Trabalho (DSST) do MTE, o que houve foi uma mudança de planejamento e não de prioridades. "Em nenhum momento, nos últimos anos, o planejamento de segurança e saúde foi deixado de lado. O que aconteceu, e que era necessário acontecer, é que o planejamento, que anteriormente era limitado à área, passou a englobar também os aspectos trabalhistas propriamente ditos".

Segundo a diretora, a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do MTE estabelece diretrizes para o planejamento. Neste ano, as prioridades determinadas têm como base os números de acidentes por setor econômico. Essas áreas serão alvos de fiscalizações em todo o território nacional. "Para os setores prioritários, são estabelecidas estratégias e táticas de intervenção, que podem incluir, além de uma fiscalização intensiva, outras metodologias, como notificação coletiva, reuniões, mediações". As superintendências regionais do MTE também podem definir suas prioridades.

Em 2007, o setor que mais acumulou acidentes de trabalho foi a indústria, com 129 mil ocorrências, seguido pelo setor de serviços, com 70,5 mil acidentes. Porém, o setor mais fiscalizado foi o comércio, com 43.461 ações, seguido da indústria, com 31.918 ações. Os dados foram apresentados pelo auditor fiscal Marcell Fernandes Santana, da SRTE/ES , durante o 26º Encontro Nacional dos Auditores Fiscais (Enafit). Das cinco divisões estabelecidas pela Previdência Social, o comércio é a que apresenta menor índice de acidentes e, apesar disso, foi o primeiro setor em número de fiscalizações do MTE.

Últimos três anos
No período de janeiro de 2005 a maio de 2008, 439 pessoas morreram em acidentes no trabalho no MT. As atividades econômicas com maior número de óbitos foram: transporte rodoviário de cargas (37), construção (30), criação de bovinos (22), madeireira (22) e cultivo da soja (19).

No mesmo período, quase 2 milhões de CATs foram emitidas no Brasil. E os setores que mais se destacam em números de ocorrências registradas são: as atividades de atenção à saúde; a construção; os transportes terrestres; os supermercados; o abate e preparação de produtos da carne e de pescado e o setor sucroalcooleiro. Fernando Donato pondera, entretanto, que nem sempre o problema é mais grave nas áreas de maior incidência. "No caso da área de saúde, por exemplo, são poucos acidentes que são fatais, o contrário ocorre no caso dos transportes".

No transporte de cargas, uma das principais causas de acidentes é a jornada exaustiva dos funcionários. "As empresas impõem um ritmo que leva um grande volume de caminhões na estrada, e com motoristas, inclusive, usando drogas para se manterem acordados. Alguns empregadores argumentam que as estradas é que são ruins, mas já foi comprovado que não são problemas nas estradas que causam acidentes", avalia Fernando.

No caso dos frigoríficos - que são muitos no Mato Grosso -, as condições de trabalho são insalubres, os trabalhadores são submetidos a altas e baixas temperaturas em curto intervalo de tempo. "No corte das peças é o estágio em que ocorrem mais acidentes", descreve o auditor fiscal Fernando.

A falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), como a tela de proteção e o cinto, é a principal causa dos problemas na construção civil. "Nas madeireiras acorrem muitos acidentes porque os proprietários tiram um equipamento de proteção instalado na serra para que ela trabalhe mais rápido. Na derrubada de árvores também há casos de acidentes com motosseras".

Dados alarmantes
Foram contabilizadas 143 mortes por acidentes de trabalho no estado do Mato Grosso em 2007. O estado aparece em oitavo lugar na média de acidentes do trabalho fatais. Por outro lado, quando se analisa a Taxa de Mortalidade Específica [TME] por acidentes, calculada pelo número de óbitos notificados de trabalhadores segurados sobre o total de segurados, Mato Grosso passa à primeira posição na média referente ao período 1997-2006.

Enquanto a média nacional do período foi de 14,68 mortes por 100 mil segurados da Previdência Social e a de São Paulo, o estado com maior número absoluto com 7.668 mortes, foi de 11,12 mortes por 100 mil segurados, Mato Grosso apresenta uma média de 47,26 mortes por acidente do trabalho por 100 mil segurados do INSS.

A SRTE/MT criou o Comitê Estadual de Prevenção de Acidentes do Trabalho para tirar o estado do topo dessa lista. Participam do organismo, o INSS, a Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego, Cidadania e Assistência Social (Setecs), a Secretaria de Estado da Saúde (Ses), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Coordenadoria de Saúde do Trabalhador da Secretaria de Estado de Saúde (CSTSES). "A nossa pretensão é envolver a Polícia Rodoviária Federal, por conta dos acidentes de transporte e trazer a universidade para esse debate também", relata Fernando, da SRTE/MG.

O INSS é parceiro do MTE na análise dos acidentes de trabalho. Por meio do projeto Sirena, o instituto repassa informações do seu banco de dados para subsidiar a investigação das causas de óbitos e acidentes graves. Após o encerramento da análise, o MTE envia suas conclusões à Procuradoria do INSS para a possível proposição de ações regressivas contra os responsáveis, com o objetivo de recuperar para os cofres públicos os recursos gastos com benefícios previdenciários.

Fonte: www.reporterbrasil.com.br

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Enchentes renovaram o ambientalismo catarinense?

Guilherme Floriani

O governador Luis Henrique da Silveira (PMDB) anunciou a maior tragédia da história, mais de 100 vítimas fatais. Estes se somaram às 340 mortes das 5 maiores enchentes ocorridas desde 1974 no Estado. As chuvas torrenciais seriam uma profecia ambientalista, mas mudanças climáticas globais já enviaram o furacão Catarina em 2004, um ciclone extratropical e totalmente inesperado.

Desta vez, uma enorme repercussão na mídia, e pronta resposta governamental, em socorro às vítimas. De lideranças locais à senadora Marina Silva partiram manifestos destacando a ingerência ambiental na escalada dos efeitos da chuva. O silêncio dos políticos da situação a respeito inspirou ainda maior desconfiança. Muito ocupados no socorro às vítimas ou sentem-se comprometidos com o tenebroso panorama instalado.

Os 283 litros despejados num dia em cada metro quadrado de Blumenau parecem ter sido a gota d'água para transbordar a pressão reacionária na política ambiental nacional. A ampla comoção social pode instar uma tomada de consciência dos milhares que sofrem diariamente suas tragédias individuais decorrentes do mau uso do ambiente. Um possível divisor de águas no curso ambientalista brasileiro, pois Santa Catarina serve de alerta dos efeitos da degradação do Planeta que ameaçam todo o Brasil, bem como, em todo o país, ocorrem neste momento fortes ameaças ao meio-ambiente.

Sinal deste novo tempo catarinense é a pressão contra o Projeto de Lei Estadual 238/2008 do governador catarinense, que institui o Código do Meio Ambiente Estadual. Inconstitucional segundo a Procuradora da República Analúcia Hartmann, fere a Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, o Código Florestal brasileiro, reduzindo matas ciliares a uma linha de 5m de largura. Ameaçaria Unidades de Conservação na área afetada pela enchente, e afogaria o processo de licenciamento, autorizando automaticamente os empreendimentos não vistoriados pelo órgão ambiental em 60 dias.

A proposta encontrava eco na Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC), Sindicatos da Construção Civil (SINDUSCON) e Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado (FETAESC), que compõem o "setor produtivo" e consideram a legislação atual muito restritiva ao desenvolvimento.

Antes da água baixar iniciou um abaixo-assinado contra o projeto de lei, mas o documento base de pesquisadores apontando causas do desastre anunciado só foi publicado como matéria paga no maior jornal do Estado, do Grupo RBS (filiado à Globo). Outras matérias relacionadas não fazem referência ao fato de Santa Catarina ter liderado o desmatamento no país em 2007, nem às falcatruas no licenciamento ambiental como denunciou a operação Moeda Verde da Polícia Federal. Artigos de renomados ambientalistas também pouparam nomes dos responsáveis por ataques à legislação, uma fragilidade intervencionista no atual cenário político nacional.

Rendo-me à Marilena Chauí. Em "uma ideologia perversa" a ética passou a ser inseparável da ideologia do consenso ao enfatizar o sofrimento individual e coletivo, e por isso obtém consenso de opinião: somos "éticos" porque nos solidarizamos às vítimas da enchente. Mas a contrapartida dessa ideologia é clara: não nos perguntem sobre como ser ético para evitar novas catástrofes, isso divide as opiniões, e a modernidade, como se sabe, é o consenso. Apóia-se a ética do bem ao enviar alimentos, fazer doações, mas não se promove autonomia individual para estabelecer normas de uso coletivo do ambiente. Nem co-responsabilidades ou controle social são provocados.

Por isso, seria oportunismo ambientalista apenas ameaçar a recorrência do problema, nem cabe pautar miraculosas obras de engenharia para conter enchentes, como provou New Orleans (EUA). Pois o cuidado de todo o ambiente, muito mais que matas ciliares, promoverá segurança à população, produção de água e alimentos de qualidade ou conservação da biodiversidade.

Da questão multifacetada e metatecnológica, surge uma ética que renova o ambientalismo? Há alguns dias, o diálogo caminhava para flexibilizar a legislação, e o Ministério Público firmou vultoso Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o "setor florestal". Para aqueles que perderam tudo, suas casas e parentes, o consenso agora deve ser outro. Talvez a tragédia não seja suficiente para mudar a sociologia provada perversa, mas pode provocar um renovado movimento social de diálogo com a natureza em Santa Catarina.


Guilherme Floriani reside em Lages (SC) e é Engenheiro Florestal

Fonte: www.cartamaior.com.br

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Perdidos no espaço

Por Fábio Adiron


Andei pensando sobre o que é o espaço urbano. Primeiro fui ao dicionário e descobri que a principal definição de espaço é uma "extensão indefinida". Urbano se refere aquilo que é "da cidade ou próprio da cidade". Logo, espaço urbano é qualquer extensão indefinida dentro de uma cidade. Sendo qualquer lugar torna-se, ao mesmo tempo, todos os lugares.

O que não quer dizer que todos os lugares da cidade podem ser freqüentados por todos. E nem estou pensando em questões de uso de locais privados, nem os espaços ditos públicos (que deveriam ser comuns a todos) realmente o são.

A explicação é triste, mas é real: nem todos são considerados seres humanos do mesmo valor. Pobres e negros são acompanhados de perto por seguranças de shopping centers, tipos que usem roupas exóticas são olhados como sendo de outro planeta. Quando não são assassinados por aqueles que deveriam lhes garantir a segurança, como ocorreu recentemente em São Paulo.

E as pessoas com deficiência...ah as pessoas com deficiência, são uns coitadinhos que deveriam ficar guardados dentro de casa ou de alguma instituição que cuidasse dos mesmos, que diabos esses caras inventam de circular nas ruas?

Além de não serem considerados cidadãos de primeira classe, também acredita-se que se são "deficientes", eles é que precisam dar conta das suas limitações, que precisam superar suas dificuldades - o problema é deles, não de todos.

Um cadeirante não consegue atravessar um quarteirão inteiro, afinal cada dono de casa ou prédio é responsável por sua calçada e essas não tem padronização nenhuma, mudam de nivel a cada dez metros, formam degraus. Muitas não tem manutenção nenhuma. Se, por um milagre conseguem chegar onde queriam, não podem entrar pois os arquitetos fizeram escadarias monumentais ou instalaram elevadores cujas portas não tem largura suficiente para uma cadeira de rodas.

As pessoas cegas também sofrem as agruras da falta de acessibilidade. Alguns elevadores tem o teclado em braille. Mas nem todo cego lê braille, pior, os que sabem braille conseguem apertar o botão do andar para onde querem ir, mas como descobrem que o elevador chegou no pavimento desejado? Pare para pensar um pouco : como é que um cego consegue atravessar sozinho uma rua? Também são pessoas que querem viver com autonomia e não ter de depender dos outros para se movimentar.

Pessoas surdas podem não ter restrições de mobilidade ou de visão. O que não significa que o espaço de todos lhes seja seguro. Mais de uma vez, em notícias recentes, pessoas surdas foram presas porque se "recusavam" a responder questionamento de policiais!

Se a deficiência é intelectual a hostilidade já começa no olhar. Se não é hostilidade é compaixão assistencialista : "aquele moço com Síndrome de Down andando sozinho na rua deve estar perdido...será que a família não cuida dele?" As pessoas fazem todas as suposições, exceto é de que essas pessoas tem capacidade para viver e se locomover como qualquer outro. Afinal, ele não é um ser tão humano como nós, não é mesmo?

Mas não são só os cadeirantes, cegos, surdos ou pessoas com deficiência intelectual.

Outro dia vi uma mãe empurrando o carrinho de bebê pelo meio da rua, correndo o risco de ser atropelada, pois a calçada era inviável. Uma pessoa obesa não entra em muitos elevadores e banheiros que já vi por aí. Ops! Então essa tal de acessibilidade não é só para pessoas com deficiência? Pessoas idosas poderiam ser beneficiadas? Mulheres grávidas ? Até os meninos que empurram os carrinhos de entrega de supermercado? Semáforos sonoros seriam mais seguros para todos? Respeito é bom para todo mundo.

Derrubar barreiras físicas, de comunicação e de atitude pode beneficiar todo mundo. Não é um privilégio concedido às pessoas com deficiência.

Mas isso só vai acontecer quando a diversidade for considerada como valor. Esta incompreensão da cultura da diversidade implica em que a sociedade pense que a inclusão seja destinada a melhorar a a vida das pessoas com deficiência e não a vida da população em geral.

A cultura da diversidade vai nos permitir construir uma cidade de qualidade, espaços de de qualidade e cidadãos de qualidade. A cultura da diversidade é um processo de aprendizagem permanente, onde TODOS devemos aprender a compartilhar novos significados e novos comportamentos de relações entre as pessoas.

Para o bem e para o mal.

Fonte: http://xiitadainclusao.blogspot.com/2008_11_01_archive.html

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Enfim, a crise... Enfim, a razão?

Jorge Luiz Souto Maior(*)

Há muitos anos fala-se, no Brasil, de uma “crise econômica” como forma de justificar uma reiterada reivindicação de redução das garantias jurídicas de natureza social (direitos trabalhistas e previdenciários).
Eis que de repente vivenciamos, enfim, uma real, concreta e insofismável crise econômica de âmbito mundial. Seus efeitos, entretanto, surpreendem.
O primeiro efeito, talvez o mais relevante, é o de que a humanidade, pressionada pela necessidade de tentar solucionar uma grave crise passa a pensar seriamente. Ou seja, após longos anos de hegemonia ideológica, recobrou-se a razão e conforme preconiza a Declaração Universal dos Direitos do Homem, as pessoas devem utilizar sua razão para agir em relação aos outros com espírito de fraternidade (1).
Como agora a crise não é apenas uma retórica, faz-se necessária a apresentação de argumentos sérios para tentar enfrentá-la. E, concretamente, ninguém está brincando com a crise. As opiniões, ainda que divergentes, se apresentam de forma responsável. “Todos contra a crise”, anuncia o G7.
No que tange aos meios para sair da crise, seriamente encarados, destaca-se o de que o Estado não pode restar alheio à crise do mercado financeiro. A participação ativa do Estado, regulando o modelo, apresenta-se fundamental para evitar o colapso. A mera somatória de interesses individuais não é capaz de desenvolver políticas públicas sociais, mesmo que as empresas anunciem possuir “responsabilidade social”. A desregulação plena do mercado incentiva uma lógica de concorrência autodestrutiva (2).
É bem verdade que não há uma coincidência de idéias quanto à pertinência de “injeção” de dinheiro público para salvar empresas do mercado financeiro. A “ajuda” ao mercado financeiro, dada pelo Estado, com o dinheiro público, se, por um lado, procura evitar a quebra em cascata, por outro, representa incentivar o desenvolvimento de um capitalismo sem risco, mantendo a idéia de que o lucro pertence à iniciativa privada e o prejuízo deve ser suportado pelo Estado. Nestes termos o manifesto publicado por mais de 200 economistas americanos, de diversas universidades, expondo, publicamente, sua preocupação com a destinação de verbas públicas a instituições financeiras que durante muitos anos obtiveram grandes lucros com suas operações de alto risco.
Esse dinheiro, reclamam os líderes de ações humanitárias, nunca lhes pode ser destinado...
De todo modo, resta definitivamente abalada a idéia de que os mercados se auto-regulam e que são capazes, por si sós, de produzir justiça social. Essa certeza, aliás, já existia desde o final da Primeira Guerra Mundial, com reafirmação após a Segunda Grande Guerra, tendo sido expressada em inúmeras Declarações Internacionais.
O segundo efeito importante, em termos de respostas sérias a uma verdadeira crise, é o de que em nenhum momento se tem falado, como antes era costume, em diminuição de garantias sociais. Aliás, muito pelo contrário. Na Espanha, por exemplo, que foi o país europeu em que mais se evidenciou a política de precarização das relações de trabalho e onde se experimentam, agora, as graves conseqüências do maior número de desempregados dos últimos 10 (dez) anos, anuncia-se um plano para conferir maior proteção social aos trabalhadores abrangidos pela flexibilizadora “Lei do Trabalhador Autônomo”, que atualmente atinge três milhões de espanhóis.
Em termos de relações de trabalho, até bem pouco tempo atrás, sem muito apego às conseqüências, dizia-se, no Brasil, em bom português, que “se deve manter o poder das empresas de se livrarem de seus empregados quando bem entenderem”, mas, agora, diante da autêntica crise econômica, a prioridade, reconhece-se, é a preservação dos empregos, tida como política econômica fundamental em âmbito local e mundial. “Diante da crise, prioridade é emprego e crédito”, diz, no Brasil, a Ministra Dilma Roussef (3). Já os líderes europeus anunciam que vão adotar medidas para proteger empregos e crescimento (4).
Sabe-se bem que um desemprego em massa, norteado pelos interesses particulares de cada empresa, conduz ao colapso do modelo. Não é possível sair da crise, deixando que as empresas, por interesses próprios, conduzam, sem qualquer freio, milhares, milhões de pessoas, ao desemprego. Uma atitude generalizada neste sentido só tende a agravar a situação atual e a levar ao desajuste pleno do sistema econômico em escala mundial.
Diante da anterior “crise”, de cunho retórico, tentava-se fazer acreditar que salvar empresas em dificuldade econômica, conduzindo pessoas ao desemprego, era a única fórmula válida de construção social. Mas, a imposição de sacrifícios apenas aos trabalhadores, para salvar empresas que ao longo de anos deixaram de cumprir obrigações tributárias e sociais, nunca foi e nunca será uma política econômica responsável e isto, no enfrentamento da atual verdadeira crise, que chamou todos à razão, é, agora, reconhecido sem qualquer resistência.
Oportuna, por isso mesmo, a advertência feita pela Associação Latino-Americana de Juízes do Trabalho, em nota oficial, no sentido de que o maior perigo da crise é o do abandono do sistema jurídico de natureza social, cabendo aos juízes assumirem o compromisso de transmitir para a sociedade a certeza da preservação da eficácia desses direitos.
É relevante verificar que os dados da atual crise talvez sejam mais alarmantes que os do “crash” de 29, mas só não se chegou, ainda, ao mesmo efeito trágico, por conta, exatamente, dos freios impostos pelas políticas públicas, que, funcionando, interligam, por ação do Estado, interesses econômicos e garantias sociais, conferindo uma espécie de “sentido moral à economia” (5).
É por isso que o discurso, em torno do custo do trabalho, em época de verdadeira crise, mudou necessariamente. É possível constatar que nenhum economista, de qualquer linha ideológica que seja, trata, presentemente, da questão da crise econômica por essa via oblíqua. Nenhuma solução apresentada para a crise parte do pressuposto da necessidade de se reduzirem garantias sociais. A própria questão da “informalidade”, quase sempre apresentada, no Brasil, como causa do custo do trabalho, finalmente é tratada pelos aspectos restritos da questão tributária e da necessária política de apoio ao micro-empresário, como, aliás, deve mesmo ser (6).
Não foi por coincidência que o prêmio Nobel de Economia, em meio a presente crise, foi conferido a Paul Krugman, que se notabilizou nos últimos anos pela crítica à política “neoliberal” do governo Bush.
Mas, não é só. Outra grande perplexidade gerada pelos primeiros efeitos da crise é a de que, embora o Brasil já comece a sentir os sintomas da crise, segundo acaba de anunciar o IBGE, o número de pessoas ocupadas nas seis principais regiões metropolitanas do País somou 21,98 milhões em setembro, com alta de 0,7% com relação a agosto, e de 3,4%, diante de setembro do ano passado e o contingente de empregados com carteira assinada (emprego formal) prosseguiu na trajetória de alta em setembro, com acréscimo de 1,1% com relação a agosto, e aumento de 6%, no confronto com setembro do ano passado.
Seria equivocado dizer que os dados em questão demonstram que a crise econômica não abalou e não abalará os empregos, até porque os seus efeitos talvez ainda não tenham sido complemente sentidos. Por outro lado, não deixa de ser uma razoável demonstração de que a economia tem razões que a própria economia desconhece e que é mesmo, no mínimo, uma irresponsabilidade considerar que se possa desenvolvê-la a partir do mero pressuposto da retração das garantias sociais.
São muitas, por óbvio, as variantes e é extremante difícil apontar causas e fixar prognósticos. Por que chegamos a esse momento? Até onde vai a crise? São respostas que devemos procurar, para, emergencialmente, impedir que a situação fique sem controle e, em um segundo momento, para evitar que torne a ocorrer.
O mais importante, no entanto, é não ficar tentando apontar vencidos e vencedores, como se debate social fosse um jogo para satisfação pessoal. No cômputo geral, o que se percebe é que a razão, respondendo aos chamados das Declarações Internacionais firmados ao longo de décadas após duas guerras mundiais, tende a prevalecer. Não se pode desprezar a perspectiva da justiça social, pois nenhum sucesso econômico advirá baseado na miséria econômica e cultural alheia. Uma sociedade sólida, e que vale a pena defender, é aquela que fornece a todos condições dignas de sobrevivência e de desenvolvimento pessoal.
Neste contexto, está, necessariamente, afastada a idéia de que a profusão econômica possa ser pensada ao custo das garantias trabalhistas, pois que incentiva a concorrência na lógica do “dumping” social. A última coisa que se pode pensar agora é no aprofundamento dos problemas sociais, que, certamente, advêm do aumento do desemprego e da diminuição generalizada, sem qualquer limite, do ganho da classe trabalhadora. Uma classe social sozinha não pode suportar os efeitos dos desajustes econômicos e ser chamada para se sacrificar por um modelo que, com esta perspectiva, não faria nada além do que meramente lhe explorar.
A relevante contribuição que o direito pode dar para suplantar a crise é a mesma que se fixou no período pós-segunda guerra mundial: reafirmação da eficácia dos preceitos que tornam o pacto de solidariedade em valor jurídico.
Não há espaço, portanto, para continuar falando em liberdade contratual irrestrita em matéria trabalhista; em não-intervenção do Estado nas relações de trabalho; em responsabilidade por culpa nos acidentes do trabalho; em livre-iniciativa desvinculada da verdadeira função social de preservação dos empregos; em mercado dos competentes, atribuindo aos desempregados a pecha de “inimpregáveis” por não possuírem a qualificação exigida por uma quase sagrada competição; em afirmar que os vencedores fizeram por merecer e que os perdedores são culpados por seu próprio destino; em livre-concorrência sem peias; em liberdade para impor, pelo poder, renúncias a direitos tidos como fundamentais; em flexibilização de garantias sociais; em intermediação de mão-de-obra como técnica administrativa moderna e como requisito de inserção na concorrência mundial, permitindo com isso que pessoas sejam transformadas em coisas; em caráter programático das normas de proteção social; em fatalismo sócio-econômico determinado pela inexorável “globalização”, que aparece, assim, como justificativa de toda e qualquer injustiça social; pois, certamente, nada disso contribui para um enfrentamento sério dos problemas atuais.
A partir do teor das manifestações apresentadas diante de uma verdadeira crise econômica de nível mundial, é possível extrair a conclusão de que a humanidade não está disposta a passar, novamente, pelas graves conseqüências de um capitalismo desregrado, que agasalha apenas interesses imediatos de lucros de alguns segmentos, e por isso, está recobrando a razão para reafirmar os compromissos assumidos com a eficácia dos Direitos Humanos de natureza social.
No fundo, tento acreditar que isso seja mesmo verdade, torcendo para que não tenhamos que sofrer muito para, enfim, apreender essa lição e para que, uma vez superada a crise, não a esqueçamos rapidamente...

(*) Juiz do trabalho, membro da Associação Juízes para a Democracia e professor de direito do trabalho da Faculdade de Direito da USP.

Notas:
1. Art. I - “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito 2. Vide, neste sentido, as observações insuspeitas de Carlos Bresser Pereira, enunciadas em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 21/10/08: “A Volta da Política” e de Abram Szajman (“O Tamanho do Tombo e suas Lições”, publicado na Folha de São Paulo, edição de 22/10/08, p. A-3), ainda que em tom mais ameno.
3. Agência Estado - 17/10 - 18:15: http://ultimosegundo.ig.com.br/economia/2008/10/17/dilma_diante_da_crise_prioridade_e_emprego_e_credito_2054119.html
4. Folha “on line”, 16/10/2008 - 15h07, http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u456966.shtml
5. Segundo expressão de Rubens Ricupero, “Moral da Crise”, Folha de São Paulo, edição de 26/10/08, p. B-2
6. Vide, a propósito, texto de Guilherme Afif Domingos, “MEI – pela formalização de um país”, publicado na Folha de São Paulo, edição de 21/10/08, p. A-3.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Nós, os juízes: deuses ou cidadãos?

KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE

QUANDO INGRESSEI na magistratura, em janeiro de 1989, um magistrado que, na época, não aceitava bem a idéia de que mulheres pudessem fazer parte do Judiciário, disse em tom de chiste que não concebia mulher judicando porque, afinal, Deus era homem e, assim, os juízes só poderiam ser do sexo masculino. Acrescentou, com o gesto de uma lactante: imaginem uma mamada entre um despacho e outro!
Não sei o que mais me chocou, se a discriminação contra as mulheres, que eram em número reduzidíssimo, ou se o fato de, ainda que em tom de brincadeira, algum juiz pudesse se considerar um ser divino -portanto, com poderes absolutos e ilimitados.
Essas lembranças vieram à tona ao ler na edição da Folha de 11/11 uma frase que teria sido dita por um juiz: "A Constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso ( ...) não passa de um documento; nós somos os valores, e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição, como dizia Carl Schmitt". Teria ainda acrescentado que determinados delitos "obrigam à adoção de atitudes não-ortodoxas".
A idéia de que cada juiz é a própria Constituição ou o verdadeiro soberano encarna o totalitarismo do qual a humanidade foi vítima recente.
Valiosa a lição de Roberto Romano, que, referindo-se a Carl Schmitt, diz: "Escutemos nosso realista: "o führer defende o Direito contra os piores abusos quando, no instante do perigo e em virtude das atribuições de supremo juiz, as quais, enquanto führer, lhe competem, cria diretamente o Direito". O magistrado sublime decide: certos indivíduos, grupos, setores sociais, étnicos e religiosos são amigos ou inimigos. Dadas as premissas, conhecemos as conseqüências. É relativamente fácil recuar, horrorizados, diante do decisionismo jurídico. Suas mãos mostram excrementos de sangue" (prefácio de "Razão Jurídica e Dignidade Humana", de Marcio Sotelo Felippe).
A concepção adotada revela a visão absolutamente distorcida da democracia e do verdadeiro papel do juiz em uma ordem democrática. Os juízes e o Judiciário estão subordinados ao povo, nos termos do ordenamento jurídico democraticamente construído, e não podem se sobrepor a isso supondo-se eles mesmos o espírito do povo. É a "polis" que determinou, na Constituição e nos tratados internacionais, qual é a sociedade que almeja, sob quais princípios, fundamentos e patamares éticos. O juiz não substitui essas diretrizes pelas suas.
No que tange à matéria penal e processual penal, inaceitável supor conduta "não-ortodoxa", pois são temas em que é intensa a intervenção do Estado no plano da liberdade. Os limites são rígidos e não podem ser ultrapassados, muito menos por um juiz que tem como função evitar que órgãos públicos ou privados, sob qualquer pretexto, os violem.
Mas o bom combate contra tais concepções não pode servir de pretexto para uma investida contra a liberdade de expressão. Vislumbra-se esse risco em debates recentes no próprio Judiciário.
A liberdade de expressão é cláusula pétrea da Constituição. A Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece que toda pessoa terá o direito à liberdade de expressão, que inclui a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteira.
Reafirmando esse princípio, a corte interamericana sustentou (opinião consultiva número 5/85) que: "A liberdade de expressão é pedra angular da existência mesma de uma sociedade democrática. É indispensável para a formação da opinião pública. É também condição "sine qua non" para que os partidos políticos, os sindicatos, as sociedades científicas e culturais e quem em geral deseje influir sobre a coletividade possam se desenvolver plenamente. É, enfim, condição para que a comunidade, na hora de fazer escolhas, esteja suficientemente informada. Assim, é possível afirmar que uma sociedade que não está bem informada não é plenamente livre".
Os juízes, evidentemente, gozam dos mesmos atributos dos demais seres humanos. No 7º Congresso das Nações Unidas, o tema mereceu especial destaque, estabelecendo a organização dos princípios básicos relativos à independência judicial, dentre eles a normativa de que de juízes, assim como dos demais cidadãos, não podem ter subtraídos os direitos de liberdade de expressão, associação, crença e reunião, preservando a dignidade de suas funções e a imparcialidade e independência da judicatura.
Magistrados, de qualquer instância, não são deuses, não criam nem destroem, devem garantir o sistema democrático.

KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE é juíza de direito em São Paulo, co-fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia

Fonte: Folha de São Paulo de 19/11/2008

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

SANTA CATARINA: menoscabo à cidadania dos desafortunados

João Alberto Franco. Defensor Público da União e Alexandre Morais da Rosa. Juiz de Direito (TJSC), membro da Associação Juízes para a Democracia.


1. No dia 11 de setembro foi publicada notícia no sítio do Superior Tribunal de Justiça dando conta que o Presidente daquela Corte, Ministro César Asfor Rocha, ao participar da XV Conferência Estadual de Advogados de Santa Catarina, “convocou a categoria para trabalhar conjuntamente com a magistratura e o Ministério Público na elaboração de uma agenda conjunta para melhorar os serviços prestados pelo Poder Judiciário”.
2. A iniciativa é salutar e merece todo o apoio da classe jurídica nacional e de toda a sociedade brasileira. Na ocasião, de acordo como noticiado, o Governador de Santa Catarina, Luiz Henrique da Silveira, “afirmou que apóia a expansão dos serviços judiciários no Estado, que cresceram em seu governo”. Ainda segundo a notícia, disse ele: “De 2003 a 2007, pagamos R$ 69 milhões aos advogados dativos pela assistência judiciária, que tem um custo mensal de R$ 1,7 milhão”.
3. Cabe ressaltar que se mostra lamentável que o Estado de Santa Catarina adote um modelo que vai de encontro ao disposto na Carta da República de 1988, mantido, em muito, por conveniências tópicas e sem fundamento democrático. A Constituição da República determinou que o cidadão carente de recursos para contratar um advogado particular e arcar com as custas judiciais tenha a assistência jurídica (e não só judiciária) prestada por uma Instituição mantida pelo Estado para esse fim: a Defensoria Pública.
4. Embora com muitas dificuldades orçamentárias, a maioria dos Estados-membros, exceto Paraná e Goiás, que fazem coro com Santa Catarina, cumpriu e implementou o mandamento constitucional. Santa Catarina ainda se furta a fazê-lo. O que há é uma espécie de sistema de terceirização nebulosa do serviço, que deveria ser essencialmente público, por escritórios de advocacia, absolutamente estranho ao desenho constitucional. Essa heresia se dá em virtude do que dispõe o artigo 114 da Constituição Estadual de SC, cuja (in) constitucionalidade é objeto de Ação Direta no Supremo Tribunal Federal (ADI 3892).
5. Um dos pífios argumentos é o da ausência de recursos. Entretanto, conforme noticiado, gasta-se no Estado quantia mais que suficiente à criação e manutenção de uma Defensoria Pública de excelência, nos moldes constitucionais (R$ 1.700.000,00 por mês!). Perceba-se que este valor seria mais do que suficiente para se implementar um serviço adequado.
6. A Defensoria Pública é uma Instituição nacional que se traduz numa carreira de Estado, e não pode ser substituída pela assistência judiciária dativa, sem autonomia (art. 134, § 2°, da Constituição), sem diretrizes de atuação, sem garantias e prerrogativas a seus membros, tudo isso em prol da defesa dos direitos dos necessitados. A sua ausência, além de claro descumprimento do Direito Fundamental assegurado pela Constituição da República (art. 5º, inciso LXXIV), é uma afronta inadmissível à cidadania dos seus destinatários.
7. Não se podem solapar os Direitos Fundamentais conquistados após séculos de lutas pela implantação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. A saída se dá por uma decisão do Governante de plantão ou pelo Supremo Tribunal Federal. Que o Estado de Santa Catarina não perpetue o desrespeito ao cidadão carente! Nem o STF…

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Vinte anos da Constituição

Defensoria ainda é a prima pobre das carreiras jurídicas

por Marcelo Semer

Dentre os significativos avanços da Constituição da República, que ora aniversaria 20 anos, seguramente poderíamos assinalar a relevância concedida aos direitos fundamentais, verdadeiro estandarte que abre a Carta Cidadã, e o amplo leque de direitos sociais que a partir dela foram incorporados em nosso ordenamento.

A ênfase nos direitos fundamentais não se dá apenas pela sua amplitude, isto é, pelo rol dos direitos assegurados, mas também pelas garantias às garantias, a consolidação através das cláusulas pétreas, que impedem sua redução ou supressão, e a incorporação contínua de novas normas de proteção aos direitos humanos. O sistema é uma porta aberta permanentemente para os novos direitos e fechada para o retrocesso.

A incorporação dos direitos sociais, a seu turno, segue a lógica do constitucionalismo do pós-guerra europeu, que agrega os direitos humanos de segunda geração, em um caminho típico de um Estado Social-Democrático em direção à igualdade, sem abrir mão das liberdades civis do Estado de Direito, conquistas de primeira geração dos direitos humanos.

Mas, se é verdade que além desta superestrutura de direitos, a Constituição Federal também desenhou uma estrutura jurídica compatível com seu exercício, em especial a formatação de um Judiciário independente e de um Ministério Público autônomo e prenhe de novas competências, também é inequívoco que um dos pilares desta estrutura ainda permanece bamba, duas décadas depois. Refiro-me à Defensoria Pública, instrumento indispensável para o efetivo gozo dos direitos fundamentais de muitos, e porta de entrada para os direitos sociais para aqueles que mais deles necessitam.

As omissões de governantes e dos legisladores têm transformado o Judiciário em órgão ativo na efetivação dos direitos explicitados na Constituição Federal. Cada vez mais, temos nos convencido de que os princípios constitucionais não são letras mortas de pura poesia. Vimos superando, de forma ainda hesitante, mas gradual, os obstáculos impostos pelo positivismo, inclusive a idéia de que a maioria das normas constitucionais não passam de programáticas, de mera intenção. O Judiciário engatinha no sentido de trazer para si a tarefa de tornar vivos os direitos consagrados, mesmo à custa de determinar ao Executivo a realização de políticas públicas, quando indispensáveis à fruição dos direitos.

No entanto, enquanto os direitos fundamentais foram agigantados pela Constituição Cidadã e os direitos sociais passam a ser matéria constante de ações judiciais, eis que a Defensoria Pública ainda é tratada de forma assistencialista, alijando uma plêiade gigantesca de carentes das questões mais emergenciais. Assim tem ocorrido como regra que os mais necessitados são aqueles que menos transformam suas carências (que não são poucas) em ações judiciais. É mais fácil encontrar nos nossos tribunais litígios que os abarrotam envolvendo os consumidores de classe média, como usuários de linhas telefônicas móveis, associados de planos de saúde, pagadores de mensalidades escolares, ou mesmo vítimas de atrasos aéreos, do que questões atinentes aos direitos sociais em sua essência, como à educação pública, atendimento integral na saúde ou acesso a um transporte coletivo em condições aceitáveis.

Tudo isso decorre do pouco caso que os governantes têm dado às Defensorias Públicas, veículos da população carente de acesso à justiça e, por conseqüência, à garantia de seus direitos fundamentais.

O exemplo de São Paulo talvez seja o mais impactante. Criada depois de 18 anos da determinação constitucional, a Defensoria Pública ainda é a prima pobre das carreiras jurídicas. É essencial à função jurisdicional do Estado, diz a Constituição Federal em seu artigo 134, mas, como se vê, não tão essencial assim, pois na maioria das comarcas e em grande parte dos juízos, a função jurisdicional se desenvolve mesmo sem a participação da Defensoria Pública. O número de defensores no estado não atinge 1/3 do de juízes ou promotores (estes estabelecidos em todas as comarcas e varas distritais), para uma população carente na casa de alguns milhões.

Depois de um biênio de funcionamento, a Defensoria ainda não agrega um corpo funcional que possibilite o trabalho, sem depender de comissionamentos de outras instituições. E a remuneração de seus defensores é incompatível com os similares em outras carreiras, inviabilizando o recrutamento de profissionais da mesma proficiência que juízes, promotores ou procuradores do Estado — a tendência será de um eterno esvaziar, transformando-se em mera etapa de passagem para outras instituições, sem criar em si mesmo e em seus servidores a noção perene de carreira. Como se não bastasse, é compelida, inclusive judicialmente, a manter convênio para contratar advogados terceirizados para cumprir justamente sua atividade-fim, ou seja, advogar para os carentes. Que carreira se sustentaria desta forma?

Não é possível que estejamos hoje comemorando 20 anos da Constituição que mais positivou direitos fundamentais, que mais incorporou direitos sociais, e ao mesmo tempo relegando para o assistencialismo e a improvisação, o descaso e o desprezo, a instituição fundamental para que tais direitos possam ser exigidos.

Diz o artigo 5, inciso XXXV, da Constituição Federal, que nenhuma lesão ou ameaça de lesão de direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário. Mas a inafastabilidade da jurisdição não pode funcionar apenas como norma retórica. A ausência de uma Defensoria Pública autônoma, ou seja não conduzida pelos interesses do Poder Executivo, e estruturada em compatibilidade com seus encargos, exclui da apreciação pelo Judiciário de lesões de direito de um incontável número de pessoas.

Fazer cumprir a Constituição e a ampla gama de direitos nela assegurada, 20 anos depois, também é criar, ou recriar, a Defensoria Pública como instituição que não seja tratada como de segunda divisão apenas porque cuida de pobres. Isso ofende o espírito do constituinte que hoje se homenageia.

Marcelo Semer: é juiz de direito em SP e ex-presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 8 de outubro de 2008

Estatuto da AJD

Artigo 1º
A "Associação Juízes para a Democracia" entidade não governamental, de tempo indeterminado, sem fins lucrativos ou corporativistas, fundada em 13 de maio de 1991, com sede na cidade de São Paulo.

Artigo 2º
A Associação tem por finalidade:
1) O respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito.
2) A promoção da conscientização crescente da função judicante como proteção efetiva dos direitos do Homem, individual e coletivamente considerado, e a conseqüente realização substancial, não apenas formal, dos valores, direitos e liberdades do Estado Democrático de Direito.
3) A defesa da independência do Poder Judiciário não só perante os demais poderes como também perante grupos de qualquer natureza, internos ou externos à Magistratura.
4) A democratização da Magistratura, assim no plano do ingresso, como no das condições do exercício profissional, com o fortalecimento dos direitos dos juízes à liberdade de expressão, reunião e associação.
5) A Justiça considerada como autêntico serviço público que, respondendo ao princípio da transparência, permita ao cidadão o controle de seu funcionamento.
6) A defesa dos direitos dos menores, dos pobres e das minorias, na perspectiva de emancipação social dos desfavorecidos.
7) A criação e o desenvolvimento de vínculos de cooperação e solidariedade mútuos entre operadores judiciais e associações afins.
8) A promoção e a defesa dos princípios da democracia pluralista, bem como a difusão da cultura jurídica democrática.

Artigo 3º
A Associação trabalhará para a consecução de seus propósitos, tanto no âmbito interno, como no internacional, podendo filiar-se a entidade estrangeiras congêneres.

Artigo 4º
São membros da associação:
1) Os Associados fundadores.
2) Os magistrados que se comprometam, por escrito, a atuar para a consecução dos fins estabelecidos no art. 2º , aprovada a solicitação pelo Conselho de Administração.

Artigo5º
Perde-se a qualidade de membro:
1) A pedido do associado.
2) Por decisão da Assembléia Geral, por maioria de 2/3 dos votos, em decorrência da prática de ato contrário às finalidades estatutárias ou que implique outro prejuízo moral para a Associação.
3) Por ato do Conselho de Administração, em decorrência do não pagamento de três contribuições mensais ordinárias, ou de contribuição extraordinária.

Artigo 6º
As contribuições serão fixadas pela Assembléia Geral.

Artigo 7º
As despesas da Associação serão suportadas coletivamente. Os recursos compõem-se de contribuições, ordinárias e extraordinárias, e liberalidade.
§ 1º As despesas serão autorizadas pelo Tesoureiro, de acordo com o orçamento e as decisões dos órgãos estatutários. O Tesoureiro pode delegar funções a outro membro do Conselho de Administração.
§ 2º Os associados não respondem pelas obrigações da entidade.

Artigo 8º
A Assembléia é o poder soberano da Associação, cabendo-lhe definir a política geral.
§ 1º Os associados em dia com as contribuições reunir-se-ão em assembléia geral ordinária uma vez ao ano.
§ 2º A Assembléia Geral ordinária ou extraordinária, será convocada pelo Conselho Executivo, pelo de Administração, ou ainda por um quarto dos associados, com antecedência mínima de dez dias, constando da convocação a ordem dos trabalhos.
§ 3º A Assembléia aprovará as contas do exercício findo, voltará o orçamento subseqüente e deliberará sobre as questões da ordem dos trabalhos, ressalvando o disposto no parágrafo seguinte.
§ 4º O artigo segundo do Estatuto só poderá ser modificado em Assembléia Geral Extraordinária, específica e exclusivamente convocada para essefim, instalada com a presença de pelo menos um quarto dos associados em dia com as contribuições, por maioria de dois terços.

Artigo 9º
A Associação é gerida por um Conselho de Administração, composto de sete membros eleitos pela Assembléia Geral, com mandato de dois anos, renovável por um período.
§ 1º Serão também eleitos 1º, 2º 3º suplentes, que substituirão, pela ordem, nos impedimentos, os membros efetivos do Conselho de Administração.
§ 2º As decisões do Conselho de Administração são tomadas por maioria absoluta, presentes pelo menos três de seus membros.
§ 3º O Conselho de Administração reunir-se-á sempre que necessário, mas no mínimo cada três meses.
§ 4º O Conselho de Administração elaborará e submeterá o orçamento à Assembléia Geral.

Artigo 10º
A cada dois anos, na segunda quinzena de maio dos anos ímpares, a Assembléia Geral elegerá os sete membros do Conselho de Administração e seus três suplentes, em dia e horários indicados pelo Conselho Executivo.

Artigo 11º
Até 60 (sessenta) dias antes da eleição, o Conselho de Administração designará Junta Eleitoral constituída por três associados que não sejam candidatos, não exerçam cargos na Associação e não sejam parentes ou afins de candidato, até o quarto grau.
§ 1º Compete à Junta expedir instruções, dirigir e fiscalizar a eleição, apurar votos e decidir sobre os casos omissos.
§ 2º Da decisão que indeferir registro de chapa, cabe recurso para a Assembléia.
§ 3º Podem votar e ser votados os associados em dia com suas mensalidades e que tenham ingressado na Associação com antecedência mínima de 120 (cento e vinte) dias da data da Assembléia.

Artigo 12º
As candidaturas são integradas em chapas, vedada a candidatura individual.

Artigo 13º
Até 30 (trinta) dias antes da eleição, os candidatos deverão registrar na Secretaria da Associação as respectivas chapas. Nenhum candidato poderá figurar em mais de uma chapa.

Artigo 14º
O voto é secreto e direto, vedado o voto por procuração.
§ 1º É permitido o voto por carta enviada pelo associado, inclusive pelos residentes na cidade de São Paulo, de forma tal que o envelope de encaminhamento sirva de prova de votação, utilizando-se envelope padrão fornecido pela AJD, postado pelo eleitor com antecedência mínima de 10 (dez) dias.
§ 2º Todos os votos recebidos até o início da Assembléia serão depositados na urna, durante o procedimento eleitoral, na presença dos associados que tiverem comparecido.
§ 3º A cédula de votação enviada aos associados deverá conter os nomes dos integrantes das chapas prévia e validamente inscritas.
§ 4º Não serão computados os votos recebidos a destempo.
§ 5º Serão colocados na urna tanto os votos depositados pelos eleitores presentes como os votos recebidos pelo correio, sendo pública a apuração, na presença de todos os que tiverem comparecido à Assembléia.
§ 6º Nos envelopes maiores enviados pelo correio estarão envelopes menores, sem identificação alguma, contendo os votos dos eleitores.

Artigo 15º
A apuração dos votos se fará imediatamente após o encerramento da votação. A posse dos eleitos se dará em seguida, dissolvendo-se automaticamente a Junta Eleitoral.

Artigo 16º
O Conselho de Administração designará, dentre seus membros, o Conselho Executivo, composto de presidente, secretário e tesoureiro.
§ 1º O Conselho Executivo encarregar-se- á de executar as decisões do Conselho de Administração, durante o período de seu mandato, e de convocar as eleições periódicas.
§ 2º Os membros do Conselho Executivo são os porta- vozes da Associação.

Artigo 17º
Em casos de impedimento, o membro da Associação poderá ser representado por um dos pares, que disporá de dois votos, incluído o seu.

Artigo 18º
O Presidente representará a Associação em Juízo e nos atos da vida civil, facultada a delegação de poderes a outro membro do Conselho de Administração.

Artigo 19º
A Associação poderá ter representações regionais, a critério do Conselho de Administração.

Artigo 20º
Assembléia Geral decidirá sobre a dissolução da entidade, mediante convocação específica do Conselho de Administração e será instalada com a presença mínima de metade dos associados. Se tal proporção não se verificar. Haverá nova convocação com quinze dias de intervalo, podendo então, ser decidida pelos presentes em qualquer número, mas pelo voto mínimo de dois terços.

Artigo 21º
Em caso de dissolução, a Assembléia designará liquidante, destinando o ativo a uma ou mais associações similares.