quinta-feira, 31 de julho de 2014

O Judiciário não é neutro e precisa estar do lado da democracia

por André Augusto Salvador Bezerra*

A inserção do Judiciário como poder autônomo e independente é produto da evolução do Estado Moderno ocidental, que, sob a crença da gestão científica da sociedade, teoricamente apartou em setores estanques a Política do Direito. A primeira consistiria em tarefa dos poderes Executivo e Legislativo ao passo que o Direito consistiria em atribuição da atividade jurisdicional na solução dos conflitos de interesse.
Por isso, a consideração do Judiciário como poder neutro, cujos membros, nas célebres palavras de Montesquieu, limitar-se-iam ao papel de boca da lei.
O Estado Moderno, porém, nunca foi neutro. A própria instituição do Estado de Direito a partir da Revolução Francesa de 1789 visou à concretização de um projeto de poder por parte de uma classe social que, na época, emergia como hegemônica.
Em tais termos, ao longo dos séculos, o regular funcionamento do sistema estatal objetivou o alcance de certos fins e fundamentos. Ao Judiciário, por consequência, como função do Estado, atribuiu-se historicamente o papel político e jurídico de atuar em direção a esses objetivos- ainda que por intermédio de juízes dotados do dever funcional de imparcialidade.
Vale dizer que o Judiciário tem um lado: o lado dos fins e fundamentos do Estado, seja ditatorial seja democrático.
Esse raciocínio, como não poderia deixar de ser, aplica-se à realidade do Brasil. Em 1964, quando um golpe substituiu a democracia por uma ditadura civil-militar, o Judiciário brasileiro passou a atuar em sintonia aos escopos do Estado autoritário a partir de então construído, legitimando o regime. O decreto de prisões e o silêncio institucional perante as torturas contra quem ousava contestar o sistema configuram exemplos de ações do Judiciário (em que pese a heróica resistência individual de muitos magistrados) em favor de uma realidade estatal voltada à manutenção da ordem, o que era essencial à estabilidade e à segurança dos projetos empresariais realizados pelos grupos civis que apoiavam o regime.
A promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988 parecia ser a superação do quadro ditatorial. Ao positivar uma série de direitos essenciais à democracia, o legislador constituinte impôs ao Judiciário o dever de atuar em favor dos fundamentos e dos fins dessa nova realidade estatal, dentre os quais o pluralismo político (art. 1o, V da CF) e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3o, I da CF).
A realização do megaevento empresarial da Copa do Mundo de 2014 explicitou, contudo, as dificuldades de o Judiciário brasileiro adaptar-se a tais princípios democráticos. Bastou uma parcela da população ir às ruas exercer seu direito de protestar, colocando em risco o sucesso econômico da competição, para tornar claro as violações de princípios inerentes a um Estado Democrático de Direito: a presunção de inocência, o caráter excepcional da prisão, a ampla defesa e a integridade física dos cidadãos, em muitos casos, cedem lugar à violência policial na dispersão de manifestações e à execração pública somada à privação de liberdade de ativistas tratados como terroristas.
O mais grave é que esse quadro não é peculiaridade da Copa do Mundo. Na realidade, a ampla visibilidade internacional do evento serviu para tornar manchete o que faz parte do cotidiano de moradores das regiões mais carentes do Brasil. Não é de hoje que esses cidadãos sentem na pele os efeitos da ação de um Estado que reprime e criminaliza quem se mostra como obstáculo aos interesses de empreendimentos patrocinados por determinados grupos econômicos, tal como ocorria na ditadura pós-1964.
Daí essa mesma parcela da população reprimida, comumente, identificar o Judiciário como poder do Estado situado do lado da repressão. À primeira vista a causar estranheza, ante a democracia consagrada constitucionalmente; mas, em uma análise detida, compreensível sobre um braço estatal ainda governado por presidentes de tribunais eleitos por uma minoria e dotados de amplos poderes (inclusive o de designar, sem critérios objetivos e impessoais, os magistrados para determinadas varas) e cuja principal corte, o Supremo Tribunal Federal, é composta por membros nomeados sem qualquer participação da sociedade civil.
No atual contexto de repressão levada ao grande público pela realização de megaeventos empresariais (lembrando que, dentro de dois anos, o Rio de Janeiro sediará as Olimpíadas), torna-se mais patente a necessidade de o Judiciário democratizar-se internamente. Eis um requisito essencial para, externamente, perante toda a sociedade brasileira, o Judiciário mostrar que está do lado de quem a Constituição determina: o lado da democracia.

* Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD)
Fonte: O Estado de São Paulo de 30/07/2014

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Mais de 55 mil trabalhadores sofreram acidentes com máquinas em 2013

Ao todo, 55.118 pessoas foram mortas ou incapacitadas por máquinas perigosas e desprotegidas. Empresas resistem em cumprir e tentam suspender norma de uso
Por Alessandro da Silva e Vitor Araújo Filgueiras*

Todos os anos, milhares de trabalhadores brasileiros são mortos ou incapacitados por máquinas perigosas e desprotegidas. Em 2013, segundo dados das Comunicações de Acidentes de Trabalho ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), apenas 11 tipos de máquinas e equipamentos (como serras, prensas, tornos, frezadoras, laminadoras, calandras, máquina de embalar) provocaram 55.118 infortúnios, o que representa mais de 10% do total de 546.014 acidentes típicos comunicados pelas empresas no Brasil.
Partes móveis de máquina sem proteção na produção de cerâmica no Sergipe. Foto: Divulgação/SRTE-SE
Partes móveis de máquina sem proteção na produção de cerâmica no Sergipe. Foto: Divulgação/SRTE-SE
Norma Regulamentadora Número 12 (NR 12), editada pelo Ministério do Trabalho (MTE), é o diploma jurídico a ser obedecido pelos empregadores brasileiros para evitar que esses acidentes aconteçam, contemplando as medidas essenciais para que seres humanos não se machuquem, incapacitem ou morram ao produzir os lucros dos seus empregadores.
Entretanto, parte das empresas brasileiras e suas entidades representativas não apenas tem resistido a cumprir a NR 12, como tem atuado em diversas frentes para tentar suspender a norma, o que acarretaria a perpetuação da carnificina verificada em nosso mercado de trabalho.
Empresas e seus representantes pedem mais prazos para continuar descumprindo a NR 12, mas não revelam que a norma existe há décadas, e sua atualização, em 2010, foi produto de negociação efetuada ao longo de anos e iniciada ainda na década de 1990, com a participação ativa e consentimento dos representantes empresariais.
A redação atual da NR 12 já está em vigor há quase quatro anos, e muito antes vigiam normas técnicas da ABNT e instruções normativas do MTE que incorporavam as exigências constantes na atual NR 12. Ou seja, além de ter sido negociada com a participação do patronato por anos, a redação de 2010 da NR 12 não traz novidades ao que já era tecnicamente previsto e aplicado pelas instituições regulatórias.
Permissão para acidentes?
Assim, ao contrário do que costumam fazer quando é conveniente para preservar seus interesses, alardeando e denunciando qualquer mudança nos instrumentos jurídicos que lhes beneficiam, agora empresas e suas entidades querem simplesmente rasgar o contrato que elas mesmas assinaram, materializado na NR 12.
Mortes e acidentes de trabalho têm sido comuns na produção de ferro no Maranhão. Na foto, Kennys de Oliveira Silva, soldador morto em 2012 Foto: Divulgação/Justiça nos Trilhos
Mortes e acidentes de trabalho têm sido comuns na produção de ferro no Maranhão. Na foto, Kennys de Oliveira Silva, soldador morto em 2012 Foto: Divulgação/Justiça nos Trilhos
Depois de tantos anos de amputações e mortes, qualquer adiamento ao cumprimento da NR 12, qualquer que seja o eufemismo adotado para designa-lo, efetivamente implicará a assinatura da permissão de acidentes, perda de entes queridos e sofrimentos de milhares de famílias dos setores mais vulneráveis da nossa sociedade.
Além disso, essa postura das entidades empresariais patrocina a concorrência espúria entre as empresas, pois mais de 4 mil empresas já regularizaram seu maquinário desde 2011, após interdição da fiscalização do Ministério do Trabalho. Isso também desmente a retórica vazia que vincula a NR 12 à preservação dos postos de trabalho, que na verdade não se relacionam com a proteção de vidas, tanto assim que as empresas continuam a operar normalmente após adequar seu maquinário.
Infelizmente, as entidades empresariais optaram por atacar a NR 12 para maximizar lucros de curto prazo de forma predatória, ao invés de promover a concorrência leal e a evolução do mercado de trabalho brasileiro para um ambiente com menos mortes e sofrimento.
* Alessandro da Silva é juiz do Trabalho em Santa Catarina, membro da Associação Juízes para a Democracia e mestrando em Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Vitor Araújo Filgueiras é auditor fiscal do Trabalho, doutor em Ciências Sociais, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT) da UNICAMP e pós-doutorando em Economia na Universidade de Campinas (UNICAMP).
Fonte: http://reporterbrasil.org.br/2014/07/mais-de-55-mil-trabalhadores-sofreram-acidentes-com-maquinas-em-2013/

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Resposta ao Tempo

João Marcos Buch*

Ao juiz da execução penal cabe executar as penas, com base na lei e principalmente na Constituição. Além disso, como corregedor do sistema, cabe-lhe fiscalizar as unidades prisionais, avaliando entre outros a estrutura dos prédios, os recursos humanos e as condições em que se encontram os detentos. Em síntese, cabe-lhe jurisdicionar. É muito difícil a tarefa. Dentre as pilhas de processos, agora muitos digitais, atendimentos a advogados, familiares de presos, pessoas da comunidade em geral, o juiz deve estar presente no sistema prisional. Ele deve se inserir no universo carcerário, para afirmar o direito e a Justiça.
Árdua tarefa desse juiz, cujo peso das dificuldades diariamente se deposita por sobre seus ombros. Talvez o ponto mais grave entre todas as mazelas brasileiras seja o sistema penal. Diferente de outras áreas também importantes, como a saúde e educação, no sistema penal o Estado age positivamente na violação dos direitos humanos. Primeiro, abandona a vítima à própria sorte. Depois, com base na lei, lança o acusado no sistema degradante do cárcere e logo em seguida esquece esta mesma lei. O sujeito passa a sobreviver em celas superlotadas, num estado selvagem, de desespero, que só faz recrudescer a violência vivenciada na vida em liberdade. 
Por isso é preciso jurisdicionar, mesmo que para tanto o juiz da execução penal tenha que se encontrar face à face com dezenas de presos doentes, que se apresentam com feridas abertas e infeccionadas pela escabiose, centenas de presos que passam frio, sem roupas suficientes a enfrentar o rigor invernal, dormindo no chão, sobre espumas, sem produtos de higiene, sem atendimentos médico. Mesmo que para tanto se tenha que enfrentar a face impiedosa de autoridades públicas, que não desejam que esse holocausto carcerário seja mostrado, dissecado e protestado pela população. 
O Tempo é mais lento dentro de uma prisão. As horas, os dias, semanas e anos custam a passar. E quando nessa eternidade viola-se a dignidade, o tempo fere, tortura. O juiz da execução penal pode fazer esse tempo fluir mais rápido e menos cruel, conferindo dignidade humana aos detentos. Cabe-lhe enfim jurisdicionar. Essa sua resposta ao tempo.

 Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville/SC, membro da Associação Juízes para a Democracia

Fonte: Diário Catarinense de 12/07/2014

terça-feira, 15 de julho de 2014

Licitações sustentáveis no TCE

* Iolmar Alves Baltazar

Diante da degradação ambiental, forçoso novos padrões de produção e de consumo, sobretudo no âmbito responsivo da governança, a exemplo das licitações sustentáveis, à medida que a administração pública absorve anualmente parcela considerável do PIB em produtos e serviços.

A seleção da proposta mais vantajosa e a concorrência dos interessados em igualdade de condições não bastam para que sejam cumpridos os objetivos das licitações. A legislação passou a prever a promoção do Desenvolvimento Sustentável também como finalidade das compras públicas. Com isso, as licitações devem observar as práticas e critérios ambientais que atendam às diretrizes das políticas nacional e estadual de Proteção ao Meio Ambiente e de Desenvolvimento Sustentável, inclusive com aposição de critérios de preferência para as propostas com maior economia de recursos naturais, redução da emissão de gases de efeito estufa e de resíduos, conforme a Política Nacional sobre Mudança do Clima.

Alguns tribunais de contas já inseriram a variável ambiental nos procedimentos fiscalizatórios. O Tribunal de Contas de Santa Catarina, recentemente publicou a Resolução 90/2014, que dispõe sobre práticas e critérios destinados à defesa do Meio Ambiente e promoção do Desenvolvimento Sustentável nas contratações. De acordo com a norma, os critérios ambientais devem permitir a avaliação objetiva na fase de habilitação e/ou no julgamento das propostas, sendo veiculados, conforme o caso, no instrumento convocatório, na especificação do objeto e/ou nas exigências de habilitação dos licitantes.

Se a sustentabilidade nas suas dimensões ambiental, social e econômica deve ser considerada nas fases interna e externa das licitações de todos os órgãos e entidades da administração pública direta e indireta, o TCE dá passo importante para orientar os demais gestores públicos sujeitos que estão ao seu controle externo.

*JUIZ DE DIREITO EM BARRA VELHA, MEMBRO DA ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA


Fonte: Jornal Diário Catarinense de 14/07/2014