Karol Assunção (Adital)
Fonte: www.adital.com.br
O Núcleo Catarinense da Associação Juízes para a Democracia tem por objetivo observar e aplicar em nosso Estado os preceitos desta Associação, que tem por finalidades estatutárias a defesa intransigente dos valores próprios do Estado Democrático de Direito, a defesa abrangente da dignidade da pessoa humana, a democratização interna do Judiciário e o resgate do serviço público (como serviço ao público) inerente ao exercício do poder, que deve se pautar pela total transparência.
Conselho de Administração
Com a publicação da aposentadoria do Ministro Eros Grau reacendeu-se o debate acerca do processo de nomeação do integrante do Supremo Tribunal Federal. Duas questões sobressaem: o fato de ser a nona indicação a ser feita pelo atual Presidente da República e a queixa de algumas categorias profissionais que entendem não estar devidamente representadas na composição da Corte.
A par das insatisfações ideológicas ou corporativas, salta aos olhos um defeito do atual sistema de nomeação dos ministros: a inexistência de participação popular. O processo é realizado como se a sociedade pudesse ser abstraída e a escolha dissesse respeito apenas aos que, naquele momento, exercem certos cargos públicos
Trata-se, contudo, de um grave equívoco.
O Estado de Direito é uma conquista decorrente das luta contra o absolutismo e constitui uma garantia de que o exercício do poder é limitado por normas gerais pré-estabelecidas, cuja observância é obrigatória. Essa concepção foi fundamental para a consolidação das liberdades individuais e coletivas, pois impede ou dificulta o exercício arbitrário e ilegal do poder.
Com o fim da Segunda Grande Guerra e a queda das ditaduras nazifascistas, os Estados europeus reassumiram o papel de Estados de Direito, porém incorporaram uma nova dimensão política: a dimensão democrática. Segundo Habermas, do ponto de vista normativo, não há Estado de Direito sem democracia. Por outro lado, como o próprio processo democrático precisa ser institucionalizado juridicamente, o princípio da soberania dos povos exige, ao inverso, o respeito a direitos fundamentais sem os quais simplesmente não pode haver um direito legítimo. (talvez possamos excluir essa referência).
O modelo democrático de constituição foi adotado por grande parte das nações e, com isso, o papel das constituições se ampliou. Consolidou-se o princípio de interpretação segundo o qual a norma constitucional tem supremacia sobre todo o ordenamento jurídico. Houve uma expansão da jurisdição constitucional, com a adoção do controle concentrado de constitucionalidade, o que intensificou a interferência do Judiciário no processo político.
No Estado Democrático de Direito cabe à constituição desempenhar dois papéis fundamentais, que consistem, por um lado, em estabelecer e garantir as regras do jogo democrático, assegurando a participação política ampla, o governo da maioria e a alternância de poder e, por outro lado, proteger os direitos e liberdades fundamentais, inclusive contra a vontade da maioria.
A Constituição Brasileira de 1988 é um marco histórico desse novo modelo de Estado, pois garantiu direitos fundamentais, reorganizou as instituições, efetuou a distribuição do poder e estabeleceu as diretrizes formais e materiais que devem nortear o processo de produção das leis e demais atos normativos, não só no âmbito público, mas também das relações privadas.
Ao Supremo Tribunal Federal foi atribuída a posição de intérprete final da Constituição, encargo que conferiu a essa Corte uma parcela de poder decisiva na organização das relações sociais públicas e privadas, pois suas decisões têm repercussão direta na vida dos cidadãos.
Conquanto o STF desempenhe papel de protagonista na vida política do país e a escolha de seus integrantes seja ato de interesse primordial de toda a sociedade, o processo de nomeação continua desprovido de procedimentos que possibilitem a efetiva participação popular.
Para Norberto Bobbio uma definição mínima de democracia pressupõe que seja atribuída a um elevado número de cidadãos, que gozem de liberdade para escolher entre alternativas reais, o direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decisões coletivas. Essa participação, por sua vez, deve estar submetida a um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos.
Percebe-se que a existência de procedimentos que regulem a participação popular é uma característica intrínseca do regime democrático e deve pautar os esforços que buscam seu constante aperfeiçoamento.
Em nosso sistema jurídico, “os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal” (art. 101, parágrafo único, da Constituição Federal). A inspiração provém do modelo de indicação dos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos, no qual, após ser indicado pelo Presidente da República, o candidato é submetido a uma sabatina no Senado.
Ocorre que o Senado norte-americano desempenha um papel destacado na nomeação, pois seu Comitê Judiciário envia um longo questionário ao candidato indicado pelo Governo, do qual constam perguntas que tanto aferem a qualificação jurídica como revelam sua visão sobre o direito e o papel do juiz na sociedade.
Caso seja aprovado por esse Comitê, o indicado passa pela sabatina no plenário do Senado, onde intensos debates se estendem por vários dias e dos quais os vários segmentos da sociedade efetivamente participam e se fazem representar.
A tradição democrática da sociedade norte-americana faz com que o procedimento da sabatina no Senado seja suficiente para viabilizar a participação popular no processo, visto que há grande mobilização social e dos meios de comunicação para revelar aos parlamentares qual a sua postura e expectativa quanto à indicação.
Outras democracias consolidadas optaram por estabelecer diferentes métodos de escolha dos integrantes da Corte Constitucional, nos quais a indicação não fica a cargo apenas do Presidente da República, mas também de outras instituições. É o caso da Alemanha, onde os membros do Tribunal Constitucional Federal são escolhidos pelo Conselho Federal e pelo Parlamento Nacional. Da mesma forma, na Itália a Corte Constitucional é composta por quinze juízes nomeados um terço pelo Presidente da República, um terço pelo Parlamento em sessão comum e um terço pelas supremas magistraturas ordinária e administrativas.
Em países que se encontram em fase de transição de regimes autoritários para a democracia — como é o caso do Brasil — é ainda mais premente o estabelecimento de procedimentos que permitam e estimulem a participação popular, inclusive no processo de escolha dos integrantes das cortes constitucionais.
Nesse sentido, em 2003 o Presidente da República Argentina editou um Decreto no qual estabelece um procedimento de pré-seleção dos juristas cujo nome está em consideração para nomeação à Suprema Corte. Esse Decreto enumera uma série de providências que devem ser tomadas para viabilizar a participação da sociedade no processo de escolha do novo integrante da Corte Constitucional.
Observe-se que, tal como em nosso país, na Argentina também se atribui ao Senado a aprovação do indicado, o que não impediu que fosse criado o referido procedimento prévio.
O atual estágio da democracia brasileira já não admite que uma decisão de tamanha relevância como essa fique adstrita ao arbítrio quase exclusivo do Presidente da República. O dispositivo constitucional que atribui ao Chefe do Executivo Federal a nomeação dos Ministros deve ser interpretado de modo sistemático, em consonância com os princípios fundamentais que regem a República brasileira, que são o princípio democrático (art. 1°, caput) e o princípio da cidadania (art. 1, II). Nesse sentido, não há dúvida de que cabe ao Presidente da República o ato formal da indicação dos candidatos a Ministro do STF; não se trata, no entanto, de um ato de mera expressão de vontade pessoal do Chefe do Executivo, desvinculado dos demais princípios e valores que orientam o Estado brasileiro. Esse ato deve estar em consonância com tais princípios e valores, de modo que a indicação do membro do Supremo Tribunal deve ser o resultado de um processo político democrático no qual o Presidente da República estabeleça um amplo debate com a sociedade acerca do perfil dos possíveis candidatos e, com base nisso, fixe a sua escolha dos nomes dos candidatos de modo legítimo e fundamentado.
Por essas razões, a Associação Juízes para a Democracia formulou um requerimento público dirigido ao Presidente da República, aberto a adesões, no qual pleiteia o estabelecimento de procedimento que permita a máxima divulgação do histórico dos juristas que são considerados para integrar o STF, assim como preveja um período de tempo razoável para o debate e a manifestação formal dos cidadãos, associações e entidades de classe acerca dos candidatos indicados.
A participação popular proporcionará um debate efetivo e enriquecedor sobre o papel do STF no Estado Democrático de Direito e sobre a trajetória profissional e acadêmica e os compromissos assumidos pelo indicado durante sua carreira, o que acarretará um aperfeiçoamento institucional e o aumento do interesse dos cidadãos pela coisa pública, requisitos imprescindíveis à consolidação da democracia em nosso país
Polícia, Exército, Marinha e Aeronáutica, unidos pela ordem, preparados para a guerra, defendendo a população. A retomada do Estado na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão vem tendo o apoio da esmagadora maioria. Quando jornais destacam atos heroicos, o primeiro sentimento é de satisfação. Afinal, o bem está vencendo o mal. E como é bom ver o orgulho de bem servir estampado na face de nossos policiais. Não consigo descrever muito bem, existe uma certa ansiedade em meu peito, um senão, que não consigo identificar. Parodiando Shakespeare, sinto que há “algo de podre no reino da Dinamarca”. Depois, sinto como quando nos dias imediatos ao “11 de setembro”, em que qualquer dúvida lançada sobre as investidas de Bush levavam à estigmatizante afirmação de que os críticos estavam ao lado dos terroristas.
Também agora existe um temor de que a voz que se levanta para questionar a atuação na guerra contra o crime logo será vista como vinda de quem é contra a paz e a polícia. Bem o contrário, a polícia nos protege e nos dá conforto, nos traz paz. É para isso que existe. Ainda assim, precisamos deixar nossa zona de conforto e pensar um pouco, num compromisso com a racionalidade.
Por que só agora a intervenção? Como se chegou a essa inversão social? De onde vêm as armas dos traficantes? Quem formou milícias e fez vistas grossas ao terror imposto por traficantes? Quem deixa de investir na segurança e controle de fronteiras para impedir a entrada de armamento e droga? Quem deixa de controlar a produção de armas nacionais e o seu desvio? Quem faltou nos mais básicos direitos à comunidade? Quem manda para o cárcere os filhos da miséria e deixa impune os que sangram a Nação com desvios de dinheiro público, muitas vezes em pacto com traficantes? Quem se apresenta só para reprimir e maquiar o caminho aos holofotes, gastando bilhões em reformas de estádios, quando escolas e postos de saúde ficam à míngua?
O Estado ausente em seu próprio reduto, na incompetência em garantir os direitos fundamentais, fecha os olhos ao fato de que na sua falta as facções criminosas infiltram-se, corrompem seus órgãos, intimidam inimigos e vendem proteção. E agora que as investidas aconteceram, onde passarão a atuar os barões do tráfico? E ainda, doravante um Estado incorruptível permanecerá em todo seu significado democrático e de direito nessas comunidades órfãs de saúde, educação, habitação, saneamento, cultura e segurança pública? A paz se faz pelas calçadas do respeito à dignidade, e num Estado democrático de direito a ordem a ela serve, jamais o contrário.
NOTA PÚBLICA – RJ - NOVEMBRO de 2010
À MARGEM DA LEI TODOS SÃO MARGINAIS
A ASSOCIAÇÃO JUIZES PARA A DEMOCRACIA - AJD, entidade não governamental e sem fins corporativos, fundada em 1991, que tem por finalidade estatutária o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, em consideração às operações policiais e militares em curso no Rio de Janeiro, vem manifestar preocupação com a escalada da violência, tanto estatal quanto privada, em prejuízo da população que suporta intenso sofrimento.
Para além da constatação do fracasso da política criminal relativamente às drogas ilícitas no país, bem como da violência gerada em razão da opção estatal pelo paradigma bélico no trato de diversas questões sociais que acabam criminalizadas, o Estado ao violar a ordem constitucional, com a defesa pública de execuções sumárias por membros das forças de segurança, a invasão de domicílios e a prisão para averiguação de cidadãos pobres perde a superioridade ética que o distingue do criminoso.
A AJD repudia a naturalização da violência ilegítima como forma de contenção ou extermínio da população indesejada e também com a abordagem dada aos acontecimentos por parcela dos meios de comunicação de massa que, por vezes, desconsidera a complexidade do problema social, como também se mostra distanciada dos valores próprios de uma ordem legal-constitucional.
O monopólio da força do Estado, através de seu aparato policial, não pode se degenerar num Estado Policial que produz repressão sobre parcela da população, estimula a prestação de segurança privada, regular e irregularmente, e dá margem à constituição de grupos variados descomprometidos com a vida, que se denominam esquadrões da morte, mãos brancas, grupos de extermínio, matadores ou milícias.
Por fim, a AJD reafirma que só há atuação legítima do Estado, reserva da razão, quando fiel à Constituição da República.
Associação Juízes para a Democracia – AJD/SC
Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SC-BC
6ª Promotoria de Justiça – Balneário Camboriú
Balneário Camboriú, SC, 15 de Novembro de 2010.
(Aniversário da República)
Em relação aos fatos noticiados no jornal DIARINHO, edições de 04 e 09 de novembro de 2010, no sentido de que 17 (dezessete) cidadãos teriam sido mortos na região por Policiais Militares, sobretudo à paisana e/ou fora de serviço, por meio deste, manifestamos séria preocupação.
No Estado Democrático de Direito, via de regra, nenhuma forma de violência é permitida, especialmente por parte dos agentes públicos, salvo quando no estrito cumprimento do dever legal ou em legítima defesa.
Por essa razão, atentos, vimos a público exigir profunda apuração
dos fatos por parte do Comando da Polícia Militar e da Polícia Civil de Santa Catarina, até mesmo para preservação da legitimidade desses órgãos da segurança pública e confiança junto à população a quem devem proteger.
Associação Juízes para a Democracia – Núcleo Catarinense
6ª Promotoria de Justiça (Curadoria dos Direitos Humanos,
Cidadania, Consumidor e Fundações) – Balneário Camboriú
Comissão de Direitos Humanos da OAB/SC – Balneário Camboriú
Data : | 11 e 25 de novembro de 2010 |
Horário: | 19h |
Local: | Auditório da OAB/SC - Rua Paschoal Apóstolo Pitsica, 4860 - Agronômica - Florianópolis - SC |
Realização: | Comissão de Direito Humanos |
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1ª Turma: Presos há 7 anos e meio sem decisão de primeiro grau no Pará obtêm liberdade
A.P.S.N. e J.B.C.C., presos preventivamente desde março de 2003 acusados pela prática de homicídio qualificado no estado do Pará, tiveram liberdade concedida pela unanimidade dos ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). O pedido foi feito pela Defensoria Pública da União com base no excesso de prazo, uma vez que eles estariam presos há sete anos e meio, aguardando a instrução do processo.
No Habeas Corpus (HC 102668), a Defensoria diz que, levando em conta esse excesso de prazo, entrou com pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça do Pará (TJ-PA), sem êxito, e depois, em agosto de 2008, no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Até a presente data, informaram os defensores na sustentação oral desta terça-feira (5), o pedido de liminar não foi analisado pelo relator do caso naquela Corte superior.
O relator no Supremo, ministro Dias Toffoli, votou pela concessão do pedido sugerindo algumas condições a serem estabelecidas pelo juiz local, tais como comparecimento dos acusados a todos os atos do processo e permanência no distrito da culpa, entre outras. Essa medida é necessária, segundo o ministro Ricardo Lewandowski, para os réus fiquem “sob os olhos da Justiça”.
“A situação é mesmo teratológica, excepcionalíssima, e o próprio defensor público observou que estaria aberto, sugerindo a possibilidade de estabelecermos condições”, afirmou Lewandowski, ressaltando que o caso é de “negativa de jurisdição”.
Para o ministro Marco Aurélio, “esse habeas corpus está em verdadeiro stand by no Superior Tribunal de Justiça, saltando aos olhos o excesso de prazo na preventiva”. Ele avaliou que “não há complexidade de processo que justifique tamanha delonga para ter-se a designação do Júri”. Por isso, o ministro também votou no sentido de conceder a ordem para afastar a prisão que, conforme ele, “se diz provisória e já tem contornos, até mesmo, de custódia definitiva, tendo em conta a condenação”.
Os ministros observaram que o caso não trata da Súmula nº 691, do STF, tendo em vista que a hipótese não se refere a habeas contra indeferimento de liminar no STJ. Isto porque, aquela Corte ainda não analisou a cautelar requerida. “Não tem liminar, então não tem Súmula 691”, disse a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha.
EC/CG
Doze de junho é o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. A data foi instituída pela Organização Internacional do Trabalho e objetiva despertar nossa sensibilidade para um indecente quadro: no mundo são 250 milhões de crianças e adolescentes que ainda precisam trabalhar para sobreviver. No Brasil, segundo o IBGE, em 2007, havia 4 milhões de crianças nessa situação. A sociedade contemporânea convive com o trabalho infantil desde a Revolução Industrial, no início do Século 19, época em que era comum o emprego de crianças em jornadas de mais de 12 horas.
A situação era tão grave que na Prússia, atual Alemanha, o primeiro impulso para que se adotassem medidas de proteção social decorrem do informe do general Von Horn, de 1828, no qual ele alerta que nas regiões industriais “em consequência do trabalho noturno das crianças”, já havia dificuldades no recrutamento de jovens sãos e úteis para o serviço militar.
Em nosso país a Constituição de 1988 proibiu o trabalho para menores de 14 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 12 anos. Em 1998 esses limites foram aumentados para 16 e 14 anos respectivamente. As crianças e adolescentes são sujeitos plenos de direitos e demandam proteção especial da sociedade e, em particular, do poder público, com políticas sociais básicas, como educação, saúde e assistência social.
Apesar de alguns progressos, essa mazela insiste em fazer parte do panorama das nossas cidades, tanto na área rural quanto na urbana, como o menino que vende panos de prato em cruzamento movimentado de Florianópolis. Ele carrega uma placa com uma oferta tentadora “7 por R$ 10”, enquanto aguarda o dia no qual o país que se pretende potência emergente lhe responderá: “Não, obrigado. Menino, você tem o direito de ser criança!”.
Fernando de Castro Faria*
Em “Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático?”, Friedrich Müller relata que ““Democracia” é uma das expressões mais indeterminadas e pergunta: diante de expressões como governo “do” povo, “pelo” povo, “para”o povo e “em nome” do povo, onde deverá ficar o povo em meio a tanto governo?"2
A referência ao povo, continua Müller, “é uma forma de legitimação, como se o sistema funcionasse com base na soberania popular e na autodeterminação do povo. Todavia, a teoria tradicional da democracia não deixa claro como a ação ex officio, o exercício do poder estatal podem ser retrorreferidos “ao povo” nos seus detalhes”.3
Acerca da nova função do direito na era do Estado Democrático de Direito, ensina Lenio Streck que ele: “agora é transformador da realidade. E é exatamente por isso que aumenta sensivelmente o pólo de tensão em direção da grande invenção contramajoritária: a jurisdição constitucional, que, no Estado Democrático de Direito, vai se transformar na garantidora dos direitos fundamentais-sociais e da própria democracia”.4
Já a democracia, segundo Friedrich Müller, é conceituada como a “forma de Estado que a partir de determinados índices-limiares não é efetivamente eliminada pela exclusão, no sentido técnico, organizacional das suas formas e dos seus procedimentos. A democracia somente pode subsistir, isto é, continuar viva, como democratização em ampliação permanente.”5
Refere, por outro lado, que “Democracia não existe, existem, isso sim, tentativas bastante distintas de institucionalizar “democraticamente” uma sociedade estatalmente organizada.”
No tocante ao termo “exclusão social”, como ensina Patrícia Helena Massa Arzabe:
Surgiu na década de 60, mas a partir da crise dos anos 80 passou a ser intensamente utilizado, integrando discursos oficiais para designar as novas feições da pobreza nos últimos anos. A expressão, por ser relativamente recente, está longe de ser unívoca, mas está sempre relacionada às concepções de cidadania e integração social. Normalmente é empregado para designar a forma de alijamento dos frutos da riqueza de uma sociedade e do desenvolvimento econômico ou o processo de distanciamento do âmbito dos direitos, em especial dos direitos humanos.6
Bem se sabe que não é tarefa simples a diminuição da desigualdade social, mormente quando se percebe a dominação da economia sobre diversos setores sociais, inclusive no âmbito do Direito. As prioridades têm sido a redução do “custo Brasil”, a “maximização do lucro”, a “eficiência”, o cumprimento de “metas de produtividade”, tudo em flagrante detrimento do compromisso com a concretização dos Direitos Fundamentais e Sociais, na linha do exposto por Morais da Rosa7
Já em termos políticos, refere Friedrich Müller que:
Todos devem ter direitos iguais – do contrário a alternância de maioria e minoria não é mais um mecanismo real. Minorias não devem funcionar como bonecos de papel que de qualquer modo serão novamente vencidos pelo voto; em uma sociedade dividida de forma pluralista, elas devem ter uma chance comprovável de se converterem em maiorias. Isso pressupõe que o povo na sua totalidade possa participar efetivamente do processo político.
Eis um dos principais aspectos da exclusão social: a não participação política do povo quando da tomada de decisões. Votar a cada dois anos significa pouco, principalmente quando nem se sabe em que projeto político (que via de regra é sinônimo de simples interesse na conquista/permanência do/no poder) se está votando.
Vale lembrar que a cidadania, segundo o senso comum, tem sido entendida, apenas, como o direito de votar e ser votado. Bem se sabe, todavia, que a cidadania vai muito além deste aspecto meramente representativo.
Mas como adverte Müller, as pessoas “estão por demais ocupadas com a sobrevivência no dia-a-dia para que se possam engajar politicamente no sentido mencionado ou exercer, com razoáveis chances de êxito, influência nas organizações políticas estabelecidas.”8
Entretanto, Müller reconhece que “uma democracia se legitima a partir do modo pelo qual ela trata as pessoas que vivem no seu território – não importa se elas são cidadãs ou titulares de direitos eleitorais ou não”.
Fica evidenciado, portanto, que, apesar das dificuldades de participação do povo na tomada de decisões (não apenas no aspecto meramente representativo), não resta outro caminho, se se pretende falar em democracia, que não seja pela reconstrução da cidadania e pela inclusão social.
É como assevera Müller: A democracia avançada não é, portanto, apenas um status activus democrático; não é mais um mero dispositivo de técnica jurídica para definir como textos de normas são postos em vigor (como “leis são promulgadas”). Ela é, agora, sobretudo um nível de exigências aquém do qual não se pode ficar, se ainda quisermos falar de uma forma de democracia (...).9.
Em suma, segundo o autor, é o tratamento dado a cada um dos membros do povo. Acrescenta que: O enfraquecimento da auto-estima, a falta de “reconhecimento”, conduz à paralisia das pessoas afetadas enquanto seres políticos (...) e que a injustiça econômica, social e política se vêem acrescida da jurídica: excluídos, indefesos, pobres, marginais tipicamente não podem mais contar com a proteção jurídica, são por assim dizer liberados para a caça.10
Mas que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático? Segundo Müller, o Estado Constitucional oferece dois parâmetros:
Primeiro limite: a maioria absoluta a partir de 50% (do povo ativo ou de todos os habitantes). O princípio da maioria se reveste de central importância. Se a maioria está perdida para a democracia, a própria democracia está perdida.
Segundo limite: maioria que altera a Constituição (2/3 – Alemanha e EUA e 3/5 – Brasil e França). No Brasil e na França se exige “menos” democracia para alterar a Constituição – 60% contra 66,67% dos EUA e Alemanha. 11
Para o autor, deve-se analisar o número de não votantes (abstenções, brancos e nulos) acrescido do índice de pobreza (excluídos). Se o resultado for superior ao que preceitua a Constituição para a sua alteração, significa que “o sistema democrático perde seu status de legitimação em termos de conteúdo, e então ocorre uma fatal alteração da Constituição.”12
O autor cita exemplos: na Europa a soma fica abaixo do limite para alteração da Constituição, mas no Brasil e EUA fica acima.
Müller faz ainda algumas propostas para o Brasil, tendentes a minimizar a exclusão social, dentre as quais destaco: a reforma agrária, a diminuição da carga tributária para os pobres, os investimentos em educação e formação profissionalizante, sanções eleitorais aos partidos e candidatos e não ao eleitor que não vota, levar a CRFB/88 ao pé da letra (cita os artigos 5º, 231 e 232) e o combate à impunidade.13
Podemos concluir, portanto, que, sendo verdadeira a assertiva de que o Brasil é um dos países em que a desigualdade social se manifesta de forma mais incisiva, também é verdade que a minimização de tal problema só se dará quando houver vontade política para se cumprir os direitos fundamentais e sociais. Tais direitos, aliás, não podem ser tratados apenas como uma faculdade do administrador público de cumpri-los ou não. Trata-se de verdadeiro comando constitucional!
Mas para que o administrador público “entenda” que o comando constitucional, tanto no que se refere aos direitos fundamentais quanto aos direitos sociais, deve ser cumprido, é preciso que haja participação popular na cobrança de tais direitos, quer pelo voto, quer pela participação no orçamento ou pela fiscalização da coisa pública e participação na tomada de decisões, respeitado, por certo, o que está no âmbito da discricionariedade do agente público.
A fase de positivação de tais direitos no plano constitucional já passou, sendo flagrante retrocesso, de acordo com a nova doutrina constitucional, falar-se em normas de conteúdo meramente “programático” ou de “boas intenções”. Não, isso já está superado.
Por fim, como já advertia Müller, em 1999, quando de sua conferência na Faculdade de Direito da UFRGS:
Os juristas com mandato e competência para tal fim estão aqui objetivamente no papel de uma vanguarda social e deveriam assumir esse papel corajosamente; tanto mais, quando justamente no Brasil os juristas, especialmente os advogados exerceram desde o séc. XIX uma influência progressista. Eles são simultaneamente precursores de uma consciência pública mais ampla da força vinculante da Constituição e das leis; situados em posição de destaque, cabe-lhes a tarefa de atuar no sentido de uma melhor comunicação na ciência, na práxis e na política jurídica, em nível nacional e também além das fronteiras do país.14
O compromisso, portanto, é com a concretização de direitos, ainda que pela via judicial.
1 O presente estudo, ora em resumo, é fruto do seminário “Direitos sociais como direitos exigíveis” apresentado na disciplina “Efetividade dos Direitos Fundamentais”, do curso de Mestrado da Univali, sendo professor da disciplina o Doutor Marcos Leite Garcia.
2 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático? Tradução de Peter Naumann. Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura, 2000.
3 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 567.
4 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. rev. amp. e com posfácio. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. 594p.
5 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 569.
6 ARZABE, Patrícia Helena Massa. Pobreza, Exclusão Social e Direitos Humanos: o papel do Estado. Buscalegis. Disponível em < http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/25758/25321 >. Acesso em: 24 abr. 2010.
7 ROSA, Alexandre Morais da; LINHARES, José Manuel Aroso. Diálogos com a LAW & ECONOMICS. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.
8 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 568.
9 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 571.
10 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 572/573.
11 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 589/590.
12 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 591/592.
13 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 592/593.
14 MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão... p. 593.
* Mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí e membro da Associação Juízes para a Democracia
Marcelo Semer
A ministra Carmen Lúcia resumiu de forma curiosa seu voto pela improcedência da ação que buscava firmar os limites da anistia: “Não vejo como reinterpretar uma lei, trinta e um anos depois”. No ano passado, todavia, o próprio STF em expressiva maioria, havia feito, em dimensão muito superior, o mesmo com a Lei de Imprensa. Entendeu-a totalmente contrária à Constituição, não trinta, mas quase quarenta anos depois de sua edição.
Os dois pesos e duas medidas são representativos do ativismo seletivo que toma conta do STF. Em certas questões, a Suprema Corte não se constrange em fazer papel de legislador –como quando decide que, a despeito da vontade expressa do constituinte que não a previu, a fidelidade partidária estaria escrita nas entrelinhas da lei. Em outros momentos, nega jurisdição. Como afirmou Eros Grau: a tarefa de rever a lei da anistia é do Legislativo, não do Judiciário. Mas a tarefa de interpretar a lei é, e sempre será, do Judiciário.
O que a ADPF da OAB pretendeu não era anular a lei da anistia (a OAB de hoje contra a OAB de ontem, acusou Eros Grau): tratava-se de firmar a interpretação de que as torturas praticadas pelos agentes da repressão, emanadas pelo Estado, não eram crimes conexos aos políticos e, por conseguinte, não estão abrangidas pela anistia. Entender o contrário, significaria legitimar uma auto-anistia do estado torturador –que viola os mais comezinhos princípios do direito internacional dos direitos humanos.
O ministro Celso de Mello ressaltou que sendo nossa anistia não teria esse vício, pois fora fruto de um acordo. Mas em quê condições, foi este acordo efetuado? Em um país ainda sob o jugo do regime militar e sem eleições livres –ou seja, ainda sem democracia e sem liberdade.
Paciência, diria Ellen Gracie, pois não se faz uma transição pacífica entre um regime autoritário e uma democracia plena sem a existência de concessões recíprocas. “A anistia foi o preço que a sociedade pagou para acelerar o processo de redemocratização”, estampou em seu voto.
Pagamos o preço, então, por duas vezes: a primeira por ficar vinte anos sem democracia; a segunda, para esquecer os crimes de quem nos oprimiu sob pena de não voltarmos à democracia. Difícil crer que analisando uma situação similar a esta, em outro contexto, a ministra não reconhecesse alguma forma de extorsão.
O ministro Marco Aurélio que pretendeu por um fim à discussão antes mesmo de começá-la, supostamente por ausência de qualquer dúvida de interpretação, afastou o caráter nocivo do perdão aos torturadores com uma afronta a memória das vítimas: a anistia é ato de amor e paixão.
É possível olhar para frente, sem conhecer o passado?
Para Gilmar Mendes, é a amplitude do esquecimento que contribui para o passo adiante no caminho da democracia. Mas ao esquecermos do período negro, estaremos aprendendo a não cometer os mesmos erros? Os povos que foram vítimas de genocídio, judeus, armênios entre tantos outros, buscam por todos os mecanismos manter viva a memória de seus períodos negros. É a lembrança das atrocidades que nos provoca repulsa, não o esquecimento.
O mito da cordialidade veio novamente à tona, com o presidente da Corte, Cezar Peluso: se é verdade que cada povo resolve seus problemas de acordo com sua cultura, “o Brasil fez uma opção pelo caminho da concórdia”. Nós repudiamos a tortura, mas optamos, pela cordialidade, em não puni-la.
O voto de Enrique Lewandoswki acolhia ao menos parcialmente as razões do pedido, por entender que a abrangência da anistia aos agentes do Estado não era automática e devia ser apreciada por cada juiz no caso concreto.
Mas foi o vice-presidente Ayres Brito quem melhor resumiu o sentido do julgamento, entendendo o que estava em discussão naquele momento: Perdão coletivo é falta de memória e de vergonha.
Eros Grau defendeu-se com uma crítica enviesadamente progressista: reinterpretar a lei da anistia é esvaziar a luta pela redemocratização: “Reduzir a nada essa luta, é tripudiar sobre os que, com desassombro e coragem, lutaram pela anistia”.
Mas, findo o julgamento, é questão de se perguntar: quem tripudiou sobre aqueles que com desassombro e coragem lutaram pela redemocratização? Quem exercita com o chapéu alheio nosso lado cordial, admite o silêncio como preço pela liberdade de hoje, alimenta o esquecimento como única forma de dar um passo adiante?
Fechando os olhos aos abusos de ontem, como se justificássemos os de hoje, sob o pretexto do esquecimento, do amor e da paixão, do mal necessário (que, enfim, supõe-se, muitos no fundo acreditem, seja contra subversivos seja contra criminosos), o Estado ensina a seus agentes que cordial mesmo é o povo que apanha, não reclama e depois esquece. Paga o seu preço
Fonte:http://blog-sem-juizo.blogspot.com/
Outra vez, mais uma vez, novamente, cai sobre o povo brasileiro a notícia de uma violência bárbara, terrível, horrível, desta vez retratada em seis assassinatos de jovens rapazes no interior de Goiás. Acusações de um lado, responsabilizações de outro, permeado da indignação, choro e desespero dos parentes dos jovens vitimados e também outra vez, mais uma vez, novamente, não faltam afirmações de que as penas são brandas, que a Justiça é leniente, que lugar de bandido é na cadeia.
Tentar lançar um olhar um pouco mais claro, quiçá científico, com consciência de nossas idiossincrasias e empirismos sobre o fenômeno da violência, num momento em que a paranoia coletiva é alimentada por meios de comunicação descompromissados com a ética, acaba sendo cansativo.
É cansativo presenciar formadores de opinião vomitando palavras de sangue, batendo nas mesas e clamando por endurecimento das leis, numa pseudojustificativa de segurança. Junto deles, comentaristas, até os econômicos, em jornais matinais e noturnos informam as últimas soluções para a criminalidade e celebridades apontam as pílulas milagrosas para a ordem no caos, tudo sob a ótica de graves punições, às vezes mais bárbaras, se é que é possível, que o próprio hediondo ato provocador de toda histeria.
É cansativo observar que situações pontuais não retratam em absoluto a grande maioria das situações de violência urbana que flagela a população e não podem ser comparadas ao furto de uma barra de chocolate num supermercado, à venda de uma pedra de crack no Centro da cidade, ao roubo de um relógio de um motorista no semáforo da esquina. É cansativo repetir outra vez que a violência urbana não se resolve com a violência do cárcere. Que o encarceramento em massa é exatamente o atestado de falência do Estado de bem-estar social. Que no Brasil encarceram-se especialmente pobres, migrantes e negros, o que se constata com uma breve visita a qualquer prisão do País. Que para além de medidas segregatórias, são necessárias políticas públicas sérias de educação, saneamento, habitação, emprego e saúde e que, sem isto, prender por prender é justamente insuflar o crime.
É cansativo alertar que tomar casos isolados para flexibilizar princípios fundamentais de proteção e respeito aos direitos humanos é afrontar o Estado de direito, romper com o sistema do direito penal, transformando questões sociais em questões de polícia e adentrando no movediço e perigoso terreno da tirania e absolutismo. É cansativo refletir que em algumas situações a presença do Estado talvez tenha que acontecer antes de tudo no campo do direito à saúde, incluindo a mental, pois nos meandros penais as perícias psiquiátricas muitas vezes, de forma curiosa, apesar de indicarem psicoses ou dependências graves em psicotrópicos, concluem pela responsabilidade plena dos doentes.
É cansativo lembrar que a prerrogativa irrenunciável da jurisdição implica que o juiz atue com independência e liberdade de convencimento, dele exigindo-se apenas a motivação de suas decisões. É cansativo presenciar que a dor das famílias dos jovens ceifados da vida só serve para muitos pregarem ódio e rancor, sem preocupações com o amparo de que elas necessitam, após perdas tão grandes e irreparáveis. É cansativo, tão cansativo quanto o eterno recomeço de Sísifo. Diferente dele, porém, este cansaço acaba em indignação, a indignação em força e a força em esperança de que ainda há solução. Solução racional, lúcida, principalmente pacífica.