Jorge Luiz Souto Maior(*)
Há muitos anos fala-se, no Brasil, de uma “crise econômica” como forma de justificar uma reiterada reivindicação de redução das garantias jurídicas de natureza social (direitos trabalhistas e previdenciários).
Eis que de repente vivenciamos, enfim, uma real, concreta e insofismável crise econômica de âmbito mundial. Seus efeitos, entretanto, surpreendem.
O primeiro efeito, talvez o mais relevante, é o de que a humanidade, pressionada pela necessidade de tentar solucionar uma grave crise passa a pensar seriamente. Ou seja, após longos anos de hegemonia ideológica, recobrou-se a razão e conforme preconiza a Declaração Universal dos Direitos do Homem, as pessoas devem utilizar sua razão para agir em relação aos outros com espírito de fraternidade (1).
Como agora a crise não é apenas uma retórica, faz-se necessária a apresentação de argumentos sérios para tentar enfrentá-la. E, concretamente, ninguém está brincando com a crise. As opiniões, ainda que divergentes, se apresentam de forma responsável. “Todos contra a crise”, anuncia o G7.
No que tange aos meios para sair da crise, seriamente encarados, destaca-se o de que o Estado não pode restar alheio à crise do mercado financeiro. A participação ativa do Estado, regulando o modelo, apresenta-se fundamental para evitar o colapso. A mera somatória de interesses individuais não é capaz de desenvolver políticas públicas sociais, mesmo que as empresas anunciem possuir “responsabilidade social”. A desregulação plena do mercado incentiva uma lógica de concorrência autodestrutiva (2).
É bem verdade que não há uma coincidência de idéias quanto à pertinência de “injeção” de dinheiro público para salvar empresas do mercado financeiro. A “ajuda” ao mercado financeiro, dada pelo Estado, com o dinheiro público, se, por um lado, procura evitar a quebra em cascata, por outro, representa incentivar o desenvolvimento de um capitalismo sem risco, mantendo a idéia de que o lucro pertence à iniciativa privada e o prejuízo deve ser suportado pelo Estado. Nestes termos o manifesto publicado por mais de 200 economistas americanos, de diversas universidades, expondo, publicamente, sua preocupação com a destinação de verbas públicas a instituições financeiras que durante muitos anos obtiveram grandes lucros com suas operações de alto risco.
Esse dinheiro, reclamam os líderes de ações humanitárias, nunca lhes pode ser destinado...
De todo modo, resta definitivamente abalada a idéia de que os mercados se auto-regulam e que são capazes, por si sós, de produzir justiça social. Essa certeza, aliás, já existia desde o final da Primeira Guerra Mundial, com reafirmação após a Segunda Grande Guerra, tendo sido expressada em inúmeras Declarações Internacionais.
O segundo efeito importante, em termos de respostas sérias a uma verdadeira crise, é o de que em nenhum momento se tem falado, como antes era costume, em diminuição de garantias sociais. Aliás, muito pelo contrário. Na Espanha, por exemplo, que foi o país europeu em que mais se evidenciou a política de precarização das relações de trabalho e onde se experimentam, agora, as graves conseqüências do maior número de desempregados dos últimos 10 (dez) anos, anuncia-se um plano para conferir maior proteção social aos trabalhadores abrangidos pela flexibilizadora “Lei do Trabalhador Autônomo”, que atualmente atinge três milhões de espanhóis.
Em termos de relações de trabalho, até bem pouco tempo atrás, sem muito apego às conseqüências, dizia-se, no Brasil, em bom português, que “se deve manter o poder das empresas de se livrarem de seus empregados quando bem entenderem”, mas, agora, diante da autêntica crise econômica, a prioridade, reconhece-se, é a preservação dos empregos, tida como política econômica fundamental em âmbito local e mundial. “Diante da crise, prioridade é emprego e crédito”, diz, no Brasil, a Ministra Dilma Roussef (3). Já os líderes europeus anunciam que vão adotar medidas para proteger empregos e crescimento (4).
Sabe-se bem que um desemprego em massa, norteado pelos interesses particulares de cada empresa, conduz ao colapso do modelo. Não é possível sair da crise, deixando que as empresas, por interesses próprios, conduzam, sem qualquer freio, milhares, milhões de pessoas, ao desemprego. Uma atitude generalizada neste sentido só tende a agravar a situação atual e a levar ao desajuste pleno do sistema econômico em escala mundial.
Diante da anterior “crise”, de cunho retórico, tentava-se fazer acreditar que salvar empresas em dificuldade econômica, conduzindo pessoas ao desemprego, era a única fórmula válida de construção social. Mas, a imposição de sacrifícios apenas aos trabalhadores, para salvar empresas que ao longo de anos deixaram de cumprir obrigações tributárias e sociais, nunca foi e nunca será uma política econômica responsável e isto, no enfrentamento da atual verdadeira crise, que chamou todos à razão, é, agora, reconhecido sem qualquer resistência.
Oportuna, por isso mesmo, a advertência feita pela Associação Latino-Americana de Juízes do Trabalho, em nota oficial, no sentido de que o maior perigo da crise é o do abandono do sistema jurídico de natureza social, cabendo aos juízes assumirem o compromisso de transmitir para a sociedade a certeza da preservação da eficácia desses direitos.
É relevante verificar que os dados da atual crise talvez sejam mais alarmantes que os do “crash” de 29, mas só não se chegou, ainda, ao mesmo efeito trágico, por conta, exatamente, dos freios impostos pelas políticas públicas, que, funcionando, interligam, por ação do Estado, interesses econômicos e garantias sociais, conferindo uma espécie de “sentido moral à economia” (5).
É por isso que o discurso, em torno do custo do trabalho, em época de verdadeira crise, mudou necessariamente. É possível constatar que nenhum economista, de qualquer linha ideológica que seja, trata, presentemente, da questão da crise econômica por essa via oblíqua. Nenhuma solução apresentada para a crise parte do pressuposto da necessidade de se reduzirem garantias sociais. A própria questão da “informalidade”, quase sempre apresentada, no Brasil, como causa do custo do trabalho, finalmente é tratada pelos aspectos restritos da questão tributária e da necessária política de apoio ao micro-empresário, como, aliás, deve mesmo ser (6).
Não foi por coincidência que o prêmio Nobel de Economia, em meio a presente crise, foi conferido a Paul Krugman, que se notabilizou nos últimos anos pela crítica à política “neoliberal” do governo Bush.
Mas, não é só. Outra grande perplexidade gerada pelos primeiros efeitos da crise é a de que, embora o Brasil já comece a sentir os sintomas da crise, segundo acaba de anunciar o IBGE, o número de pessoas ocupadas nas seis principais regiões metropolitanas do País somou 21,98 milhões em setembro, com alta de 0,7% com relação a agosto, e de 3,4%, diante de setembro do ano passado e o contingente de empregados com carteira assinada (emprego formal) prosseguiu na trajetória de alta em setembro, com acréscimo de 1,1% com relação a agosto, e aumento de 6%, no confronto com setembro do ano passado.
Seria equivocado dizer que os dados em questão demonstram que a crise econômica não abalou e não abalará os empregos, até porque os seus efeitos talvez ainda não tenham sido complemente sentidos. Por outro lado, não deixa de ser uma razoável demonstração de que a economia tem razões que a própria economia desconhece e que é mesmo, no mínimo, uma irresponsabilidade considerar que se possa desenvolvê-la a partir do mero pressuposto da retração das garantias sociais.
São muitas, por óbvio, as variantes e é extremante difícil apontar causas e fixar prognósticos. Por que chegamos a esse momento? Até onde vai a crise? São respostas que devemos procurar, para, emergencialmente, impedir que a situação fique sem controle e, em um segundo momento, para evitar que torne a ocorrer.
O mais importante, no entanto, é não ficar tentando apontar vencidos e vencedores, como se debate social fosse um jogo para satisfação pessoal. No cômputo geral, o que se percebe é que a razão, respondendo aos chamados das Declarações Internacionais firmados ao longo de décadas após duas guerras mundiais, tende a prevalecer. Não se pode desprezar a perspectiva da justiça social, pois nenhum sucesso econômico advirá baseado na miséria econômica e cultural alheia. Uma sociedade sólida, e que vale a pena defender, é aquela que fornece a todos condições dignas de sobrevivência e de desenvolvimento pessoal.
Neste contexto, está, necessariamente, afastada a idéia de que a profusão econômica possa ser pensada ao custo das garantias trabalhistas, pois que incentiva a concorrência na lógica do “dumping” social. A última coisa que se pode pensar agora é no aprofundamento dos problemas sociais, que, certamente, advêm do aumento do desemprego e da diminuição generalizada, sem qualquer limite, do ganho da classe trabalhadora. Uma classe social sozinha não pode suportar os efeitos dos desajustes econômicos e ser chamada para se sacrificar por um modelo que, com esta perspectiva, não faria nada além do que meramente lhe explorar.
A relevante contribuição que o direito pode dar para suplantar a crise é a mesma que se fixou no período pós-segunda guerra mundial: reafirmação da eficácia dos preceitos que tornam o pacto de solidariedade em valor jurídico.
Não há espaço, portanto, para continuar falando em liberdade contratual irrestrita em matéria trabalhista; em não-intervenção do Estado nas relações de trabalho; em responsabilidade por culpa nos acidentes do trabalho; em livre-iniciativa desvinculada da verdadeira função social de preservação dos empregos; em mercado dos competentes, atribuindo aos desempregados a pecha de “inimpregáveis” por não possuírem a qualificação exigida por uma quase sagrada competição; em afirmar que os vencedores fizeram por merecer e que os perdedores são culpados por seu próprio destino; em livre-concorrência sem peias; em liberdade para impor, pelo poder, renúncias a direitos tidos como fundamentais; em flexibilização de garantias sociais; em intermediação de mão-de-obra como técnica administrativa moderna e como requisito de inserção na concorrência mundial, permitindo com isso que pessoas sejam transformadas em coisas; em caráter programático das normas de proteção social; em fatalismo sócio-econômico determinado pela inexorável “globalização”, que aparece, assim, como justificativa de toda e qualquer injustiça social; pois, certamente, nada disso contribui para um enfrentamento sério dos problemas atuais.
A partir do teor das manifestações apresentadas diante de uma verdadeira crise econômica de nível mundial, é possível extrair a conclusão de que a humanidade não está disposta a passar, novamente, pelas graves conseqüências de um capitalismo desregrado, que agasalha apenas interesses imediatos de lucros de alguns segmentos, e por isso, está recobrando a razão para reafirmar os compromissos assumidos com a eficácia dos Direitos Humanos de natureza social.
No fundo, tento acreditar que isso seja mesmo verdade, torcendo para que não tenhamos que sofrer muito para, enfim, apreender essa lição e para que, uma vez superada a crise, não a esqueçamos rapidamente...
(*) Juiz do trabalho, membro da Associação Juízes para a Democracia e professor de direito do trabalho da Faculdade de Direito da USP.
Notas:
1. Art. I - “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito 2. Vide, neste sentido, as observações insuspeitas de Carlos Bresser Pereira, enunciadas em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 21/10/08: “A Volta da Política” e de Abram Szajman (“O Tamanho do Tombo e suas Lições”, publicado na Folha de São Paulo, edição de 22/10/08, p. A-3), ainda que em tom mais ameno.
3. Agência Estado - 17/10 - 18:15: http://ultimosegundo.ig.com.br/economia/2008/10/17/dilma_diante_da_crise_prioridade_e_emprego_e_credito_2054119.html
4. Folha “on line”, 16/10/2008 - 15h07, http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u456966.shtml
5. Segundo expressão de Rubens Ricupero, “Moral da Crise”, Folha de São Paulo, edição de 26/10/08, p. B-2
6. Vide, a propósito, texto de Guilherme Afif Domingos, “MEI – pela formalização de um país”, publicado na Folha de São Paulo, edição de 21/10/08, p. A-3.
quarta-feira, 26 de novembro de 2008
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
Nós, os juízes: deuses ou cidadãos?
KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE
QUANDO INGRESSEI na magistratura, em janeiro de 1989, um magistrado que, na época, não aceitava bem a idéia de que mulheres pudessem fazer parte do Judiciário, disse em tom de chiste que não concebia mulher judicando porque, afinal, Deus era homem e, assim, os juízes só poderiam ser do sexo masculino. Acrescentou, com o gesto de uma lactante: imaginem uma mamada entre um despacho e outro!
Não sei o que mais me chocou, se a discriminação contra as mulheres, que eram em número reduzidíssimo, ou se o fato de, ainda que em tom de brincadeira, algum juiz pudesse se considerar um ser divino -portanto, com poderes absolutos e ilimitados.
Essas lembranças vieram à tona ao ler na edição da Folha de 11/11 uma frase que teria sido dita por um juiz: "A Constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso ( ...) não passa de um documento; nós somos os valores, e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição, como dizia Carl Schmitt". Teria ainda acrescentado que determinados delitos "obrigam à adoção de atitudes não-ortodoxas".
A idéia de que cada juiz é a própria Constituição ou o verdadeiro soberano encarna o totalitarismo do qual a humanidade foi vítima recente.
Valiosa a lição de Roberto Romano, que, referindo-se a Carl Schmitt, diz: "Escutemos nosso realista: "o führer defende o Direito contra os piores abusos quando, no instante do perigo e em virtude das atribuições de supremo juiz, as quais, enquanto führer, lhe competem, cria diretamente o Direito". O magistrado sublime decide: certos indivíduos, grupos, setores sociais, étnicos e religiosos são amigos ou inimigos. Dadas as premissas, conhecemos as conseqüências. É relativamente fácil recuar, horrorizados, diante do decisionismo jurídico. Suas mãos mostram excrementos de sangue" (prefácio de "Razão Jurídica e Dignidade Humana", de Marcio Sotelo Felippe).
A concepção adotada revela a visão absolutamente distorcida da democracia e do verdadeiro papel do juiz em uma ordem democrática. Os juízes e o Judiciário estão subordinados ao povo, nos termos do ordenamento jurídico democraticamente construído, e não podem se sobrepor a isso supondo-se eles mesmos o espírito do povo. É a "polis" que determinou, na Constituição e nos tratados internacionais, qual é a sociedade que almeja, sob quais princípios, fundamentos e patamares éticos. O juiz não substitui essas diretrizes pelas suas.
No que tange à matéria penal e processual penal, inaceitável supor conduta "não-ortodoxa", pois são temas em que é intensa a intervenção do Estado no plano da liberdade. Os limites são rígidos e não podem ser ultrapassados, muito menos por um juiz que tem como função evitar que órgãos públicos ou privados, sob qualquer pretexto, os violem.
Mas o bom combate contra tais concepções não pode servir de pretexto para uma investida contra a liberdade de expressão. Vislumbra-se esse risco em debates recentes no próprio Judiciário.
A liberdade de expressão é cláusula pétrea da Constituição. A Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece que toda pessoa terá o direito à liberdade de expressão, que inclui a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteira.
Reafirmando esse princípio, a corte interamericana sustentou (opinião consultiva número 5/85) que: "A liberdade de expressão é pedra angular da existência mesma de uma sociedade democrática. É indispensável para a formação da opinião pública. É também condição "sine qua non" para que os partidos políticos, os sindicatos, as sociedades científicas e culturais e quem em geral deseje influir sobre a coletividade possam se desenvolver plenamente. É, enfim, condição para que a comunidade, na hora de fazer escolhas, esteja suficientemente informada. Assim, é possível afirmar que uma sociedade que não está bem informada não é plenamente livre".
Os juízes, evidentemente, gozam dos mesmos atributos dos demais seres humanos. No 7º Congresso das Nações Unidas, o tema mereceu especial destaque, estabelecendo a organização dos princípios básicos relativos à independência judicial, dentre eles a normativa de que de juízes, assim como dos demais cidadãos, não podem ter subtraídos os direitos de liberdade de expressão, associação, crença e reunião, preservando a dignidade de suas funções e a imparcialidade e independência da judicatura.
Magistrados, de qualquer instância, não são deuses, não criam nem destroem, devem garantir o sistema democrático.
KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE é juíza de direito em São Paulo, co-fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia
Fonte: Folha de São Paulo de 19/11/2008
QUANDO INGRESSEI na magistratura, em janeiro de 1989, um magistrado que, na época, não aceitava bem a idéia de que mulheres pudessem fazer parte do Judiciário, disse em tom de chiste que não concebia mulher judicando porque, afinal, Deus era homem e, assim, os juízes só poderiam ser do sexo masculino. Acrescentou, com o gesto de uma lactante: imaginem uma mamada entre um despacho e outro!
Não sei o que mais me chocou, se a discriminação contra as mulheres, que eram em número reduzidíssimo, ou se o fato de, ainda que em tom de brincadeira, algum juiz pudesse se considerar um ser divino -portanto, com poderes absolutos e ilimitados.
Essas lembranças vieram à tona ao ler na edição da Folha de 11/11 uma frase que teria sido dita por um juiz: "A Constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso ( ...) não passa de um documento; nós somos os valores, e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição, como dizia Carl Schmitt". Teria ainda acrescentado que determinados delitos "obrigam à adoção de atitudes não-ortodoxas".
A idéia de que cada juiz é a própria Constituição ou o verdadeiro soberano encarna o totalitarismo do qual a humanidade foi vítima recente.
Valiosa a lição de Roberto Romano, que, referindo-se a Carl Schmitt, diz: "Escutemos nosso realista: "o führer defende o Direito contra os piores abusos quando, no instante do perigo e em virtude das atribuições de supremo juiz, as quais, enquanto führer, lhe competem, cria diretamente o Direito". O magistrado sublime decide: certos indivíduos, grupos, setores sociais, étnicos e religiosos são amigos ou inimigos. Dadas as premissas, conhecemos as conseqüências. É relativamente fácil recuar, horrorizados, diante do decisionismo jurídico. Suas mãos mostram excrementos de sangue" (prefácio de "Razão Jurídica e Dignidade Humana", de Marcio Sotelo Felippe).
A concepção adotada revela a visão absolutamente distorcida da democracia e do verdadeiro papel do juiz em uma ordem democrática. Os juízes e o Judiciário estão subordinados ao povo, nos termos do ordenamento jurídico democraticamente construído, e não podem se sobrepor a isso supondo-se eles mesmos o espírito do povo. É a "polis" que determinou, na Constituição e nos tratados internacionais, qual é a sociedade que almeja, sob quais princípios, fundamentos e patamares éticos. O juiz não substitui essas diretrizes pelas suas.
No que tange à matéria penal e processual penal, inaceitável supor conduta "não-ortodoxa", pois são temas em que é intensa a intervenção do Estado no plano da liberdade. Os limites são rígidos e não podem ser ultrapassados, muito menos por um juiz que tem como função evitar que órgãos públicos ou privados, sob qualquer pretexto, os violem.
Mas o bom combate contra tais concepções não pode servir de pretexto para uma investida contra a liberdade de expressão. Vislumbra-se esse risco em debates recentes no próprio Judiciário.
A liberdade de expressão é cláusula pétrea da Constituição. A Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece que toda pessoa terá o direito à liberdade de expressão, que inclui a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteira.
Reafirmando esse princípio, a corte interamericana sustentou (opinião consultiva número 5/85) que: "A liberdade de expressão é pedra angular da existência mesma de uma sociedade democrática. É indispensável para a formação da opinião pública. É também condição "sine qua non" para que os partidos políticos, os sindicatos, as sociedades científicas e culturais e quem em geral deseje influir sobre a coletividade possam se desenvolver plenamente. É, enfim, condição para que a comunidade, na hora de fazer escolhas, esteja suficientemente informada. Assim, é possível afirmar que uma sociedade que não está bem informada não é plenamente livre".
Os juízes, evidentemente, gozam dos mesmos atributos dos demais seres humanos. No 7º Congresso das Nações Unidas, o tema mereceu especial destaque, estabelecendo a organização dos princípios básicos relativos à independência judicial, dentre eles a normativa de que de juízes, assim como dos demais cidadãos, não podem ter subtraídos os direitos de liberdade de expressão, associação, crença e reunião, preservando a dignidade de suas funções e a imparcialidade e independência da judicatura.
Magistrados, de qualquer instância, não são deuses, não criam nem destroem, devem garantir o sistema democrático.
KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE é juíza de direito em São Paulo, co-fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia
Fonte: Folha de São Paulo de 19/11/2008
Assinar:
Postagens (Atom)