quarta-feira, 27 de abril de 2011

Crime organizado: onde o Estado falta

João Marcos Buch*


Assis Chateaubriand saiu do anonimato a partir de críticas lançadas contra um jornalista famoso da época, que resolveu responder ao audacioso jovem. Com essas respostas foi ele catapultado no mundo da comunicação. Tendo isso em conta, é preciso que alguns registros sejam feitos sobre o proclamado Primeiro Grupo Catarinense (PGC). O PGC seria uma facção criminosa que comandaria o crime dentro e fora do sistema prisional. Cartas teriam sido apreendidas e atos envolvendo a segurança pública teriam sido arquitetados.

Num primeiro momento, é importante que os setores da segurança pública atentem para elementos indicativos da facção e por meio de articulações dentro da legalidade forneçam às autoridades elementos que permitam agir e impedir o nascimento deste Estado paralelo. Por outro lado, mais certo ainda é lançar a atenção às verdadeiras causas do surgimento desses comandos. Comandos paralegais surgem na falta dos legais. No Estado de São Paulo, por exemplo, alguém preso por um crime qualquer não permanece no presídio da sua respectiva cidade. Ele é transferido para outro distante. E como sabemos que na esmagadora maioria quem vai preso é o mais humilde, afogado num abismo social, esta pessoa dentro do sistema passa a depender do Estado, integralmente. Mas o Estado não fornece o mínimo para este detento. É aí o comando organizado entra, por exemplo, no fornecimento de transporte de familiares para visita, medicamentos, materiais de higiene, alimentos, etc. O preso, então, sente-se seguro a partir do comando do crime e por isso lhe será grato. Quando solto, cumprirá ordens. O Estado, não entendendo essa dinâmica, acredita que poderá conter o crime organizado com o recrudescimento geral do sistema prisional, acabando com banho de sol e convívio, submetendo familiares à revista íntima, retirando o direito do detento ao trabalho, tratando-o como um pária. Isso alimenta o crime organizado, que fica mais forte na medida em que o Estado se retira dos seus deveres e se apresenta apenas para punir.

Quando a polícia receber investimentos de capacitação e valorização, quando o sistema penitenciário respeitar os valores humanos, quando o Estado assumir a responsabilidade pelos indivíduos presos, fornecendo-lhes o mínimo existencial e propiciando seu retorno à sociedade, de forma íntegra e reconhecida e finalmente perceber que não é pelo chicote que se educa, é óbvio que não se ouvirá mais falar em PGC e outras siglas. É uma questão lógica.

*JUIZ DE DIREITO DA 2ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DE JOINVILLE E MEMBRO DA ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA

Fonte: Jornal A Notícia de 27/04/2011 (http://www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a3288814.xml&template=4187.dwt&edition=16989&section=892)

sexta-feira, 1 de abril de 2011

De direito sagrado a oportunismo

Ricardo Carvalho


Detido em flagrante por furto em Joinville, em 2009, A. L. deparou-se com um cenário digno de uma passagem de O Processo, de Franz Kafka, no dia de sua audiência. Estavam presentes o juiz e o promotor, mas não havia advogado. Sem recursos para custear os honorários, teve de aceitar um advogado particular conveniado com a Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina (OAB-SC), modelo conhecido como defensoria dativa. O profissional faltou à audiência e, por isso, o juiz João Marcos Buch determinou que o réu respondesse o processo em liberdade. A audiência foi remarcada.

“O réu estava preso há dois meses e tinha o direito de ser julgado naquele dia”, explica o juiz. Em Santa Catarina, o caso de A. L. não é exceção. “Além de serem comuns as ausências, já aconteceu de o advogado não arrolar testemunhas e apresentar uma defesa de caráter genérico, quando fica claro que ele nunca conversou com o réu antes. Eu preciso adiar a audiência, o processo se arrasta e o réu, preso, fica numa situação quase kafkiana.” De acordo com Buch, cerca de 30% dos processos sob sua apreciação que dependem do modelo dativo apresentam algum tipo de problema de ausência ou insuficiência da defesa.

Especialistas do direito alegam que a defensoria dativa não presta a garantia de ampla e integral assistência judiciária. Santa Catarina é o único estado que ainda não tomou providências para instalar uma Defensoria Pública Estadual, órgão previsto como obrigatório pela Consituição.

A principal resistência à Defensoria vem da OAB-SC. A ordem argumenta que a defesa dativa é pulverizada e garante assistência a todos os municípios, com cerca de 7 mil advogados particulares cadastrados no convênio. O presidente estadual da ordem, Paulo Borba, diz tratar-se do melhor modelo de defesa pública do País. “O atendimento é idêntico a ter um advogado privado.”

A diretora de pesquisa do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciárias, Maria Tereza Sadek, discorda. “A Defensoria é uma instituição e possui muitas singularidades que a OAB não pode suprir. Há uma forte ação extrajudicial, por exemplo. O convênio apenas designa um corpo de advogados.”

Segundo Maria Teresa, a resistência da OAB tem também um viés corporativo. “Com o número de bacharéis formados, a defensoria dativa constitui uma garantia, quase uma reserva de mercado.” O juiz Buch concorda. “Acontece muitas vezes de o defensor dativo recém-egresso da universidade comunicar, após dois ou três anos, que está se desligando do convênio. Sem generalizar, isso acaba deixando aos mais carentes, muitas vezes, um profissional inexperiente.”

A remuneração pelo convênio da OAB é feita com base em uma tabela de Unidade de Referência de Honorários (URH). Na maioria dos casos, os honorários variam de 10 (550 reais) a 20 URHs (1,1 mil reais) por processo. “O valor é muito inferior ao que o advogado ganha com clientes particulares. Insisto que não podemos generalizar, mas fica evidente que o advogado dativo, que também tem uma carteira de clientes, vai dar prioridade aos particulares”, explica o magistrado Buch.

Borba afirma que o estado repassa cerca de 1,2 milhão de reais por mês à ordem para o pagamento dos advogados. Do total, a OAB retém 10% a título de indenização por gastos administrativos. Atualmente deputado federal pelo PT, Pedro Uczai encaminhou um pedido de informação ao governo do estado em 2009, quando estava na Assembleia Legislativa. Perguntou qual é o valor repassado anualmente pelo estado à OAB-SC e a quem a ordem presta contas da quantia recebida, inclusive sobre os 10% retidos. “Não recebemos resposta. Nunca vi prestação de contas correta e aberta desse dinheiro público.” Atualmente, tramitam duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal contra a lei estadual que regulamentou a defensoria dativa.

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/politica/de-direito-sagrado-a-oportunismo