Alexandre Morais da Rosa – Juiz de Direito/SC - Doutor em Direito (UFPR). Membro da Associação dos Juízes para Democracia - AJD
Márcio Soares Berclaz – Promotor de Justiça/PR – Membro do Ministério Público Democrático - MPD
Ao interpretar provisoriamente e de modo absolutamente equivocado a Súmula Vinculante n. 13, lamentavelmente está perdendo o Supremo Tribunal Federal a possibilidade de consolidar grande momento histórico de expressivo avanço do Estado Democrático de Direito no combate ao nepotismo no âmbito das contratações de cargos comissionados e distribuição de funções gratificadas na Administração Pública. Neste momento não se discutirá a (i) legimidade democrática das Súmulas.
Lamentavelmente, após ter afirmado acertadamente a força normativa dos princípios constitucionais da moralidade, impessoalidade e igualdade do artigo 37 da Constituição da República em controle concentrado de constitucionalidade, a atual seletiva interpretação que a Corte Suprema está emprestando ao alcance da recém criada Súmula Vinculante 13 traz razões que a própria racionalidade jurídica desconhece.
Embora a redação da referida Súmula Vinculante diga que viola a Constituição a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente, em linha reta, colateral ou por afinidade, até terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal, vem teimando o STF em flexibilizar e atenuar o seu alcance, mediante o velho recurso da distinção.
A Súmula Vinculante n. 13, no seu texto normativo, sem fazer qualquer exceção ou diferença, foi, portanto, suficientemente expressa e rigorosa no sentido de proibir que parentes por qualquer meio e em até terceiro grau da autoridade nomeante (usualmente chefe de poder) ou mesmo de servidores ocupantes de cargos comissionados ou funções gratificadas possam usufruir de postos diretos no regime do serviço público. Essa a base da fonte do impedimento que deve (ria) prevalecer, salvo aprovação em concurso público, obviamente.
Qual a razão, então, de o Supremo Tribunal Federal, na apreciação liminar de recente Reclamação n. 6650[1], ter entendido que irmão (parente em segundo grau em linha reta) de Governador de Estado poderia ocupar cargo comissionado em Secretaria, simplesmente porque a Súmula não alcançaria cargos políticos, mas sim cargos administrativos? Onde reside a fonte jurídico-legal da distinção interpretativa feita pelo Supremo Tribunal em Juízo preliminar e até aqui absolutamente equivocado? Em lugar nenhum, tampouco na melhor doutrina e jurisprudência de direito constitucional e administrativo.
Paira absoluta indigência e inexistência de conceitos jurídicos sedimentados para estabelecer a diferenciação de cargos no serviço público entre políticos e administrativos. O que existe são cargos efetivos, cargos de provimento em comissão e funções gratificadas, qualquer outra categoria não passa de retórica.
Talvez a interpretação da Súmula esteja sendo feita com muito esmero, ao ponto de deixar o seu potencial de livrar o serviço público do nepotismo situado na rua dos bobos, número zero...Era uma casa muito engraçada, era uma vez que o STF pretendia banir o nepotismo do serviço público!
O discrímen realizado pela interpretação do Supremo, até aqui, mostra-se absolutamente seletivo e irrazoável. A curiosa escolha do STF estabelece perversa brecha jurídica para acentuar e agravar o clientelismo e o loteamento ilegal de cargos na Administração Pública, favorecendo o alojamento sectário e conservador de parentes por critérios nepotistas alheios ao profissionalismo e a estruturação da carreira pública justamente nos mais altos postos da Administração Pública.
Pronto: agora o administrador pode criar os cargos político que desejar para aboletar seus parentes preferidos nos melhores escalões e, ao mesmo tempo, usar o argumento da Súmula 13 para todo o resto da parentada que não quiser dar emprego! Não é uma fantástica solução? O que já parecia ser bom ficou ainda melhor...
Está dizendo até aqui o STF que o Secretário de Estado ou do Município pode ser irmão do Governador ou do Prefeito sem configurar nepotismo; o que não se pode é permitir que este mesmo irmão ocupe qualquer outro cargo subalterno da administração estadual ou municipal. Ora, ora...
Evidente que o Supremo Tribunal Federal precisa rever o seu posicionamento, sob pena de desacreditar e enfraquecer não só a concretude e efetivação real dos princípios constitucionais, como também o único sentido democrático da própria Súmula Vinculante n. 13 que acabou de editar.
De "seletividade" perversa e de punição sempre do lado mais fraco e débil, já basta à sociedade e comunidade jurídica o direito penal e o processo penal.
Ou será que o Supremo Tribunal Federal quer ver a rede da Súmula Vinculante n. 13 aplicada apenas ao peixe pequeno enquanto o tubarão continuará nadando para ocupar cargos no Poder Público na base do parentesco? Ah… íamos esquecendo que as primeiras-damas não teriam função numa secretaria social qualquer de fachada! Enfim, com uma maioria legislativa basta que se crie dezenas de Secretarias que, apesar do evidente desvio de finalidade, tudo estará em estrita conformidade com a carcaça da Súmula n.13 (ou o que sobrou dela). E os parentes prediletos, claro, devidamente empregados…
quarta-feira, 21 de janeiro de 2009
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
Das pedras de David aos tanques de Golias - 2ª Parte
By José Saramago
Também não as usa agora. Nestes últimos cinquenta anos cresceram a tal ponto a David as forças e o tamanho que entre ele e o sobranceiro Golias já não é possível reconhecer qualquer diferença, podendo até dizer-se, sem ofender a ofuscante claridade dos factos, que se tornou num novo Golias. David, hoje, é Golias, mas um Golias que deixou de carregar com pesadas e afinal inúteis armas de bronze. Aquele louro David de antanho sobrevoa de helicóptero as terras palestinas ocupadas e dispara mísseis contra alvos inermes, aquele delicado David de outrora tripula os mais poderosos tanques do mundo e esmaga e rebenta tudo o que encontra na sua frente, aquele lírico David que cantava loas a Betsabé, encarnado agora na figura gargantuesca de um criminoso de guerra chamado Ariel Sharon, lança a “poética” mensagem de que primeiro é necessário esmagar os palestino para depois negociar com o que deles restar. Em poucas palavras, é nisto que consiste, desde 1948, com ligeiras variantes meramente tácticas, a estratégia política israelita. Intoxicados pela ideia messiânica de um Grande Israel que realize finalmente os sonhos expansionistas do sionismo mais radical; contaminados pela monstruosa e enraizada “certeza” de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e autorizadas, em nome também dos horrores do passado e dos medos de hoje, todas as acções próprias resulatantes de um racismo obsessivo, psicológica e patologicamente exclusivista; educados e treinados na ideia de que quaisquer sofrimentos que tenham infligido, inflijam ou venham a infligir aos outros, e em particular aos palestinos, sempre ficarão abaixo dos que sofreram no Holocausto, os judeus arranham interminavelmente a sua própria ferida para que não deixe de sangrar, para torná-la incurável, e mostram-na ao mundo como se tratasse de uma bandeira. Israel fez suas as terríveis palavras de Jeová no Deuteronómio: “Minha é a vingança, e eu lhes darei o pago”. Israel quer que nos sintamos culpados, todos nós, directa ou indirectamente, dos horrores do Holocausto, Israel quer que renunciemos ao mais elementar juízo crítico e nos transformemos em dócil eco da sua vontade, Israel quer que reconheçamos de jure o que para eles é já um exercício de facto: a impunidade absoluta. Do ponto de vista dos judeus, Israel não poderá nunca ser submetido a julgamento, uma vez que foi torturado, gaseado e queimado em Auschwitz. Pergunto-me se esses judeus que morreram nos campos de concentração nazis, esses que foram trucidados nos pogromes, esses que apodreceram nos guetos, pergunto-me se essa imensa multidão de infelizes não sentiria vergonha pelos actos infames que os seus descendentes vêm cometendo. Pergunto-me se o facto de terem sofrido tanto não seria a melhor causa para não fazerem sofrer os outros.
As pedras de David mudaram de mãos, agora são os palestinos que as atiram. Golias está do outro lado, armado e equipado como nunca se viu soldado algum na história das guerras, salvo, claro está, o amigo norte-americano. Ah, sim, as horrendas matanças de civis causadas pelos terroristas suicidas… Horrendas, sim, sem dúvida, condenáveis, sim, sem dúvida, mas Israel ainda terá muito que aprender se não é capaz de compreender as razões que podem levar um ser humano a transformar-se numa bomba.
Publicado em O Caderno de Saramago
Também não as usa agora. Nestes últimos cinquenta anos cresceram a tal ponto a David as forças e o tamanho que entre ele e o sobranceiro Golias já não é possível reconhecer qualquer diferença, podendo até dizer-se, sem ofender a ofuscante claridade dos factos, que se tornou num novo Golias. David, hoje, é Golias, mas um Golias que deixou de carregar com pesadas e afinal inúteis armas de bronze. Aquele louro David de antanho sobrevoa de helicóptero as terras palestinas ocupadas e dispara mísseis contra alvos inermes, aquele delicado David de outrora tripula os mais poderosos tanques do mundo e esmaga e rebenta tudo o que encontra na sua frente, aquele lírico David que cantava loas a Betsabé, encarnado agora na figura gargantuesca de um criminoso de guerra chamado Ariel Sharon, lança a “poética” mensagem de que primeiro é necessário esmagar os palestino para depois negociar com o que deles restar. Em poucas palavras, é nisto que consiste, desde 1948, com ligeiras variantes meramente tácticas, a estratégia política israelita. Intoxicados pela ideia messiânica de um Grande Israel que realize finalmente os sonhos expansionistas do sionismo mais radical; contaminados pela monstruosa e enraizada “certeza” de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e autorizadas, em nome também dos horrores do passado e dos medos de hoje, todas as acções próprias resulatantes de um racismo obsessivo, psicológica e patologicamente exclusivista; educados e treinados na ideia de que quaisquer sofrimentos que tenham infligido, inflijam ou venham a infligir aos outros, e em particular aos palestinos, sempre ficarão abaixo dos que sofreram no Holocausto, os judeus arranham interminavelmente a sua própria ferida para que não deixe de sangrar, para torná-la incurável, e mostram-na ao mundo como se tratasse de uma bandeira. Israel fez suas as terríveis palavras de Jeová no Deuteronómio: “Minha é a vingança, e eu lhes darei o pago”. Israel quer que nos sintamos culpados, todos nós, directa ou indirectamente, dos horrores do Holocausto, Israel quer que renunciemos ao mais elementar juízo crítico e nos transformemos em dócil eco da sua vontade, Israel quer que reconheçamos de jure o que para eles é já um exercício de facto: a impunidade absoluta. Do ponto de vista dos judeus, Israel não poderá nunca ser submetido a julgamento, uma vez que foi torturado, gaseado e queimado em Auschwitz. Pergunto-me se esses judeus que morreram nos campos de concentração nazis, esses que foram trucidados nos pogromes, esses que apodreceram nos guetos, pergunto-me se essa imensa multidão de infelizes não sentiria vergonha pelos actos infames que os seus descendentes vêm cometendo. Pergunto-me se o facto de terem sofrido tanto não seria a melhor causa para não fazerem sofrer os outros.
As pedras de David mudaram de mãos, agora são os palestinos que as atiram. Golias está do outro lado, armado e equipado como nunca se viu soldado algum na história das guerras, salvo, claro está, o amigo norte-americano. Ah, sim, as horrendas matanças de civis causadas pelos terroristas suicidas… Horrendas, sim, sem dúvida, condenáveis, sim, sem dúvida, mas Israel ainda terá muito que aprender se não é capaz de compreender as razões que podem levar um ser humano a transformar-se numa bomba.
Publicado em O Caderno de Saramago
quinta-feira, 8 de janeiro de 2009
Das pedras de David aos tanques de Golias
Janeiro 8, 2009 by José Saramago
Este artigo foi publicado pela primeira vez há alguns anos. O seu pano de fundo é a segunda intifada palestina, em 2000. Atrevi-me a pensar que o texto não envelheceu demasiado e que a sua “ressurreição” está justificada pela criminosa acção de Israel contra a população de Gaza. Aí vai, portanto.
DAS PEDRAS DE DAVID AOS TANQUES DE GOLIAS
Afirmam algumas autoridades em questões bíblicas que o Primeiro Livro de Samuel foi escrito na época de Salomão, ou no período imediato, em qualquer caso antes do cativeiro da Babilónia. Outros estudiosos não menos competentes argumentam que não apenas o Primeiro, mas também o Segundo Livro, foram redigidos depois do exílio da Babilónia, obedecendo a sua composição ao que é denominado por estrutura histórico-político-religiosa do esquema deuteronomista, isto é, sucessivamente, a aliança de Deus com o seu povo, a infidelidade do povo, o castigo de Deus, a súplica do povo, o perdão de Deus. Se a venerável escritura vem do tempo de Salomão, poderemos dizer que sobre ela passaram, até hoje, em números redondos, uns três mil anos. Se o trabalho dos redactores foi realizado após terem regressado os judeus do exílio, então haverá que descontar daquele número uns quinhentos anos, mais mês, menos mês.
Esta preocupação de exactidão temporal tem como único propósito oferecer à compreensão do leitor a ideia de que a famosa lenda bíblica do combate (que não chegou a dar-se) entre o pequeno David e o gigante filisteu Golias, anda a ser mal contada às crianças pelo menos desde há vinte ou trinta séculos. Ao longo do tempo, as diversas partes interessadas no assunto elaboraram, com o assentimento acrítico de mais de cem gerações de crentes, tanto hebreus como cristãos, toda uma enganosa mistificação sobre a desigualdade de forças que separava dos bestiais quatro metros de altura de Golias a frágil compleição física do louro e delicado David. Tal desigualdade, enorme segundo todas as aparências, era compensada, e logo revertida a favor do israelita, pelo facto de David ser um mocinho astucioso e Golias uma estúpida massa de carne, tão astucioso aquele que, antes de ir enfrentar-se ao filisteu, apanhou na margem de um regato que havia por ali perto cinco pedras lisas que meteu no alforge, tão estúpido o outro que não se apercebeu de que David vinha armado com uma pistola. Que não era uma pistola, protestarão indignados os amantes das soberanas verdades míticas, que era simplesmente uma funda, uma humílima funda de pastor, como já as haviam usado em imemoriais tempos os servos de Abraão que lhe conduziam e guardavam o gado. Sim, de facto não parecia uma pistola, não tinha cano, não tinha coronha, não tinha gatilho, não tinha cartuchos, o que tinha era duas cordas finas e resistentes atadas pelas pontas a um pequeno pedaço de couro flexível no côncavo do qual a mão experta de David colocaria a pedra que, à distância, foi lançada, veloz e poderosa como uma bala, contra a cabeça de Golias, e o derrubou, deixando-o à mercê do fio da sua própria espada, já empunhada pelo destro fundibulário. Não foi por ser mais astucioso que o israelita conseguiu matar o filisteu e dar a vitória ao exército do Deus vivo e de Samuel, foi simplesmente porque levava consigo uma arma de longo alcance e a soube manejar. A verdade histórica, modesta e nada imaginativa, contenta-se com ensinar-nos que Golias não teve sequer a possibilidade de pôr as mãos em cima de David, a verdade mítica, emérita fabricante de fantasias, anda a embalar-nos há trinta séculos com o conto maravilhoso do triunfo do pequeno pastor sobre a bestialidade de um guerreiro gigantesco a quem, afinal, de nada pôde servir o pesado bronze do capacete, da couraça, das perneiras e do escudo. Tanto quanto estamos autorizados a concluir do desenvolvimento deste edificante episódio, David, nas muitas batalhas que fizeram dele rei de Judá e de Jerusalém e estenderam o seu poder até à margem direita do rio Eufrates, não voltou a usar a funda e as pedras.
(Continua)
Publicado em O Caderno de Saramago
Este artigo foi publicado pela primeira vez há alguns anos. O seu pano de fundo é a segunda intifada palestina, em 2000. Atrevi-me a pensar que o texto não envelheceu demasiado e que a sua “ressurreição” está justificada pela criminosa acção de Israel contra a população de Gaza. Aí vai, portanto.
DAS PEDRAS DE DAVID AOS TANQUES DE GOLIAS
Afirmam algumas autoridades em questões bíblicas que o Primeiro Livro de Samuel foi escrito na época de Salomão, ou no período imediato, em qualquer caso antes do cativeiro da Babilónia. Outros estudiosos não menos competentes argumentam que não apenas o Primeiro, mas também o Segundo Livro, foram redigidos depois do exílio da Babilónia, obedecendo a sua composição ao que é denominado por estrutura histórico-político-religiosa do esquema deuteronomista, isto é, sucessivamente, a aliança de Deus com o seu povo, a infidelidade do povo, o castigo de Deus, a súplica do povo, o perdão de Deus. Se a venerável escritura vem do tempo de Salomão, poderemos dizer que sobre ela passaram, até hoje, em números redondos, uns três mil anos. Se o trabalho dos redactores foi realizado após terem regressado os judeus do exílio, então haverá que descontar daquele número uns quinhentos anos, mais mês, menos mês.
Esta preocupação de exactidão temporal tem como único propósito oferecer à compreensão do leitor a ideia de que a famosa lenda bíblica do combate (que não chegou a dar-se) entre o pequeno David e o gigante filisteu Golias, anda a ser mal contada às crianças pelo menos desde há vinte ou trinta séculos. Ao longo do tempo, as diversas partes interessadas no assunto elaboraram, com o assentimento acrítico de mais de cem gerações de crentes, tanto hebreus como cristãos, toda uma enganosa mistificação sobre a desigualdade de forças que separava dos bestiais quatro metros de altura de Golias a frágil compleição física do louro e delicado David. Tal desigualdade, enorme segundo todas as aparências, era compensada, e logo revertida a favor do israelita, pelo facto de David ser um mocinho astucioso e Golias uma estúpida massa de carne, tão astucioso aquele que, antes de ir enfrentar-se ao filisteu, apanhou na margem de um regato que havia por ali perto cinco pedras lisas que meteu no alforge, tão estúpido o outro que não se apercebeu de que David vinha armado com uma pistola. Que não era uma pistola, protestarão indignados os amantes das soberanas verdades míticas, que era simplesmente uma funda, uma humílima funda de pastor, como já as haviam usado em imemoriais tempos os servos de Abraão que lhe conduziam e guardavam o gado. Sim, de facto não parecia uma pistola, não tinha cano, não tinha coronha, não tinha gatilho, não tinha cartuchos, o que tinha era duas cordas finas e resistentes atadas pelas pontas a um pequeno pedaço de couro flexível no côncavo do qual a mão experta de David colocaria a pedra que, à distância, foi lançada, veloz e poderosa como uma bala, contra a cabeça de Golias, e o derrubou, deixando-o à mercê do fio da sua própria espada, já empunhada pelo destro fundibulário. Não foi por ser mais astucioso que o israelita conseguiu matar o filisteu e dar a vitória ao exército do Deus vivo e de Samuel, foi simplesmente porque levava consigo uma arma de longo alcance e a soube manejar. A verdade histórica, modesta e nada imaginativa, contenta-se com ensinar-nos que Golias não teve sequer a possibilidade de pôr as mãos em cima de David, a verdade mítica, emérita fabricante de fantasias, anda a embalar-nos há trinta séculos com o conto maravilhoso do triunfo do pequeno pastor sobre a bestialidade de um guerreiro gigantesco a quem, afinal, de nada pôde servir o pesado bronze do capacete, da couraça, das perneiras e do escudo. Tanto quanto estamos autorizados a concluir do desenvolvimento deste edificante episódio, David, nas muitas batalhas que fizeram dele rei de Judá e de Jerusalém e estenderam o seu poder até à margem direita do rio Eufrates, não voltou a usar a funda e as pedras.
(Continua)
Publicado em O Caderno de Saramago
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
Número de acidentes de trabalho sobe 27,6% de 2006 para 2007
Anuário Estatístico de 2007 do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) registrou 653 mil acidentes de trabalho. Mato Grosso ocupa o 1º lugar na média relativa, com 47,26 mortes por acidente para cada 100 mil segurados
Por Bianca Pyl
O número de acidentes de trabalho aumentou 27,6% em 2007, comparado com o ano anterior. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) registrou 653 mil ocorrências, segundo dados do Anuário Estatístico de 2007. O maior impacto deste aumento (98,6%) diz respeito aos acidentes sem Comunicações de Acidentes de Trabalho (CATs), registrados por meio do nexo técnico epidemiológico - mecanismo que relaciona doenças que ocorrem com maior incidência às atividades profissionais. Os acidentes de trabalho registrados em 2007, por meio da CAT, aumentaram 3,7% em relação a 2006.
No ano passado, foram registradas 2,8 mil mortes por acidentes do trabalho em todo o país. "No caso dos acidentes fatais, o nexo técnico epidemiológico não interfere", explica Fernando Donato Vasconcelos, médico e auditor fiscal da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Mato Grosso (SRTE/MT). A nova metodologia não se aplica aos trabalhadores informais e só abrange o universo dos segurados pelo INSS.
Segundo ele, a caracterização do acidente envolve dificuldades na delimitação do que é o fator de risco ou causal, suas circunstâncias de ocorrência e a relação com o trabalho. Por isso, os números podem ser ainda maiores em função da subnotificação. "Comparando as estatísticas da Previdência Social com dados de Boletins de Ocorrência nos distritos policiais, por exemplo, temos níveis de subnotificação de cerca de 90%. Ou seja, a realidade de acidentes do trabalho é muito pior do que aparece nos dados oficiais".
Dados do governo federal mostram que acidentes e doenças do trabalho custam, anualmente, R$ 10,7 bilhões aos cofres da Previdência Social, responsável pelo pagamento do auxílio-doença, auxílio-acidente e aposentadorias.
Prioridade e planejamento
Para Fernando Donato, a primeira medida para diminuir o alto índice de acidentes repousa na priorização da questão dentro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). "O problema não é novo. As iniciativas para combatê-lo foram se perdendo ao longo dos anos. Antigamente a segurança e saúde do trabalhador era uma secretaria dentro do MTE. Atualmente há um número pequeno de auditores especialistas no tema. Os recursos são limitados".
Para Junia Barreto, diretora do Departamento de Segurança e Saúde do Trabalho (DSST) do MTE, o que houve foi uma mudança de planejamento e não de prioridades. "Em nenhum momento, nos últimos anos, o planejamento de segurança e saúde foi deixado de lado. O que aconteceu, e que era necessário acontecer, é que o planejamento, que anteriormente era limitado à área, passou a englobar também os aspectos trabalhistas propriamente ditos".
Segundo a diretora, a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do MTE estabelece diretrizes para o planejamento. Neste ano, as prioridades determinadas têm como base os números de acidentes por setor econômico. Essas áreas serão alvos de fiscalizações em todo o território nacional. "Para os setores prioritários, são estabelecidas estratégias e táticas de intervenção, que podem incluir, além de uma fiscalização intensiva, outras metodologias, como notificação coletiva, reuniões, mediações". As superintendências regionais do MTE também podem definir suas prioridades.
Em 2007, o setor que mais acumulou acidentes de trabalho foi a indústria, com 129 mil ocorrências, seguido pelo setor de serviços, com 70,5 mil acidentes. Porém, o setor mais fiscalizado foi o comércio, com 43.461 ações, seguido da indústria, com 31.918 ações. Os dados foram apresentados pelo auditor fiscal Marcell Fernandes Santana, da SRTE/ES , durante o 26º Encontro Nacional dos Auditores Fiscais (Enafit). Das cinco divisões estabelecidas pela Previdência Social, o comércio é a que apresenta menor índice de acidentes e, apesar disso, foi o primeiro setor em número de fiscalizações do MTE.
Últimos três anos
No período de janeiro de 2005 a maio de 2008, 439 pessoas morreram em acidentes no trabalho no MT. As atividades econômicas com maior número de óbitos foram: transporte rodoviário de cargas (37), construção (30), criação de bovinos (22), madeireira (22) e cultivo da soja (19).
No mesmo período, quase 2 milhões de CATs foram emitidas no Brasil. E os setores que mais se destacam em números de ocorrências registradas são: as atividades de atenção à saúde; a construção; os transportes terrestres; os supermercados; o abate e preparação de produtos da carne e de pescado e o setor sucroalcooleiro. Fernando Donato pondera, entretanto, que nem sempre o problema é mais grave nas áreas de maior incidência. "No caso da área de saúde, por exemplo, são poucos acidentes que são fatais, o contrário ocorre no caso dos transportes".
No transporte de cargas, uma das principais causas de acidentes é a jornada exaustiva dos funcionários. "As empresas impõem um ritmo que leva um grande volume de caminhões na estrada, e com motoristas, inclusive, usando drogas para se manterem acordados. Alguns empregadores argumentam que as estradas é que são ruins, mas já foi comprovado que não são problemas nas estradas que causam acidentes", avalia Fernando.
No caso dos frigoríficos - que são muitos no Mato Grosso -, as condições de trabalho são insalubres, os trabalhadores são submetidos a altas e baixas temperaturas em curto intervalo de tempo. "No corte das peças é o estágio em que ocorrem mais acidentes", descreve o auditor fiscal Fernando.
A falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), como a tela de proteção e o cinto, é a principal causa dos problemas na construção civil. "Nas madeireiras acorrem muitos acidentes porque os proprietários tiram um equipamento de proteção instalado na serra para que ela trabalhe mais rápido. Na derrubada de árvores também há casos de acidentes com motosseras".
Dados alarmantes
Foram contabilizadas 143 mortes por acidentes de trabalho no estado do Mato Grosso em 2007. O estado aparece em oitavo lugar na média de acidentes do trabalho fatais. Por outro lado, quando se analisa a Taxa de Mortalidade Específica [TME] por acidentes, calculada pelo número de óbitos notificados de trabalhadores segurados sobre o total de segurados, Mato Grosso passa à primeira posição na média referente ao período 1997-2006.
Enquanto a média nacional do período foi de 14,68 mortes por 100 mil segurados da Previdência Social e a de São Paulo, o estado com maior número absoluto com 7.668 mortes, foi de 11,12 mortes por 100 mil segurados, Mato Grosso apresenta uma média de 47,26 mortes por acidente do trabalho por 100 mil segurados do INSS.
A SRTE/MT criou o Comitê Estadual de Prevenção de Acidentes do Trabalho para tirar o estado do topo dessa lista. Participam do organismo, o INSS, a Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego, Cidadania e Assistência Social (Setecs), a Secretaria de Estado da Saúde (Ses), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Coordenadoria de Saúde do Trabalhador da Secretaria de Estado de Saúde (CSTSES). "A nossa pretensão é envolver a Polícia Rodoviária Federal, por conta dos acidentes de transporte e trazer a universidade para esse debate também", relata Fernando, da SRTE/MG.
O INSS é parceiro do MTE na análise dos acidentes de trabalho. Por meio do projeto Sirena, o instituto repassa informações do seu banco de dados para subsidiar a investigação das causas de óbitos e acidentes graves. Após o encerramento da análise, o MTE envia suas conclusões à Procuradoria do INSS para a possível proposição de ações regressivas contra os responsáveis, com o objetivo de recuperar para os cofres públicos os recursos gastos com benefícios previdenciários.
Fonte: www.reporterbrasil.com.br
Por Bianca Pyl
O número de acidentes de trabalho aumentou 27,6% em 2007, comparado com o ano anterior. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) registrou 653 mil ocorrências, segundo dados do Anuário Estatístico de 2007. O maior impacto deste aumento (98,6%) diz respeito aos acidentes sem Comunicações de Acidentes de Trabalho (CATs), registrados por meio do nexo técnico epidemiológico - mecanismo que relaciona doenças que ocorrem com maior incidência às atividades profissionais. Os acidentes de trabalho registrados em 2007, por meio da CAT, aumentaram 3,7% em relação a 2006.
No ano passado, foram registradas 2,8 mil mortes por acidentes do trabalho em todo o país. "No caso dos acidentes fatais, o nexo técnico epidemiológico não interfere", explica Fernando Donato Vasconcelos, médico e auditor fiscal da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Mato Grosso (SRTE/MT). A nova metodologia não se aplica aos trabalhadores informais e só abrange o universo dos segurados pelo INSS.
Segundo ele, a caracterização do acidente envolve dificuldades na delimitação do que é o fator de risco ou causal, suas circunstâncias de ocorrência e a relação com o trabalho. Por isso, os números podem ser ainda maiores em função da subnotificação. "Comparando as estatísticas da Previdência Social com dados de Boletins de Ocorrência nos distritos policiais, por exemplo, temos níveis de subnotificação de cerca de 90%. Ou seja, a realidade de acidentes do trabalho é muito pior do que aparece nos dados oficiais".
Dados do governo federal mostram que acidentes e doenças do trabalho custam, anualmente, R$ 10,7 bilhões aos cofres da Previdência Social, responsável pelo pagamento do auxílio-doença, auxílio-acidente e aposentadorias.
Prioridade e planejamento
Para Fernando Donato, a primeira medida para diminuir o alto índice de acidentes repousa na priorização da questão dentro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). "O problema não é novo. As iniciativas para combatê-lo foram se perdendo ao longo dos anos. Antigamente a segurança e saúde do trabalhador era uma secretaria dentro do MTE. Atualmente há um número pequeno de auditores especialistas no tema. Os recursos são limitados".
Para Junia Barreto, diretora do Departamento de Segurança e Saúde do Trabalho (DSST) do MTE, o que houve foi uma mudança de planejamento e não de prioridades. "Em nenhum momento, nos últimos anos, o planejamento de segurança e saúde foi deixado de lado. O que aconteceu, e que era necessário acontecer, é que o planejamento, que anteriormente era limitado à área, passou a englobar também os aspectos trabalhistas propriamente ditos".
Segundo a diretora, a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do MTE estabelece diretrizes para o planejamento. Neste ano, as prioridades determinadas têm como base os números de acidentes por setor econômico. Essas áreas serão alvos de fiscalizações em todo o território nacional. "Para os setores prioritários, são estabelecidas estratégias e táticas de intervenção, que podem incluir, além de uma fiscalização intensiva, outras metodologias, como notificação coletiva, reuniões, mediações". As superintendências regionais do MTE também podem definir suas prioridades.
Em 2007, o setor que mais acumulou acidentes de trabalho foi a indústria, com 129 mil ocorrências, seguido pelo setor de serviços, com 70,5 mil acidentes. Porém, o setor mais fiscalizado foi o comércio, com 43.461 ações, seguido da indústria, com 31.918 ações. Os dados foram apresentados pelo auditor fiscal Marcell Fernandes Santana, da SRTE/ES , durante o 26º Encontro Nacional dos Auditores Fiscais (Enafit). Das cinco divisões estabelecidas pela Previdência Social, o comércio é a que apresenta menor índice de acidentes e, apesar disso, foi o primeiro setor em número de fiscalizações do MTE.
Últimos três anos
No período de janeiro de 2005 a maio de 2008, 439 pessoas morreram em acidentes no trabalho no MT. As atividades econômicas com maior número de óbitos foram: transporte rodoviário de cargas (37), construção (30), criação de bovinos (22), madeireira (22) e cultivo da soja (19).
No mesmo período, quase 2 milhões de CATs foram emitidas no Brasil. E os setores que mais se destacam em números de ocorrências registradas são: as atividades de atenção à saúde; a construção; os transportes terrestres; os supermercados; o abate e preparação de produtos da carne e de pescado e o setor sucroalcooleiro. Fernando Donato pondera, entretanto, que nem sempre o problema é mais grave nas áreas de maior incidência. "No caso da área de saúde, por exemplo, são poucos acidentes que são fatais, o contrário ocorre no caso dos transportes".
No transporte de cargas, uma das principais causas de acidentes é a jornada exaustiva dos funcionários. "As empresas impõem um ritmo que leva um grande volume de caminhões na estrada, e com motoristas, inclusive, usando drogas para se manterem acordados. Alguns empregadores argumentam que as estradas é que são ruins, mas já foi comprovado que não são problemas nas estradas que causam acidentes", avalia Fernando.
No caso dos frigoríficos - que são muitos no Mato Grosso -, as condições de trabalho são insalubres, os trabalhadores são submetidos a altas e baixas temperaturas em curto intervalo de tempo. "No corte das peças é o estágio em que ocorrem mais acidentes", descreve o auditor fiscal Fernando.
A falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), como a tela de proteção e o cinto, é a principal causa dos problemas na construção civil. "Nas madeireiras acorrem muitos acidentes porque os proprietários tiram um equipamento de proteção instalado na serra para que ela trabalhe mais rápido. Na derrubada de árvores também há casos de acidentes com motosseras".
Dados alarmantes
Foram contabilizadas 143 mortes por acidentes de trabalho no estado do Mato Grosso em 2007. O estado aparece em oitavo lugar na média de acidentes do trabalho fatais. Por outro lado, quando se analisa a Taxa de Mortalidade Específica [TME] por acidentes, calculada pelo número de óbitos notificados de trabalhadores segurados sobre o total de segurados, Mato Grosso passa à primeira posição na média referente ao período 1997-2006.
Enquanto a média nacional do período foi de 14,68 mortes por 100 mil segurados da Previdência Social e a de São Paulo, o estado com maior número absoluto com 7.668 mortes, foi de 11,12 mortes por 100 mil segurados, Mato Grosso apresenta uma média de 47,26 mortes por acidente do trabalho por 100 mil segurados do INSS.
A SRTE/MT criou o Comitê Estadual de Prevenção de Acidentes do Trabalho para tirar o estado do topo dessa lista. Participam do organismo, o INSS, a Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego, Cidadania e Assistência Social (Setecs), a Secretaria de Estado da Saúde (Ses), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Coordenadoria de Saúde do Trabalhador da Secretaria de Estado de Saúde (CSTSES). "A nossa pretensão é envolver a Polícia Rodoviária Federal, por conta dos acidentes de transporte e trazer a universidade para esse debate também", relata Fernando, da SRTE/MG.
O INSS é parceiro do MTE na análise dos acidentes de trabalho. Por meio do projeto Sirena, o instituto repassa informações do seu banco de dados para subsidiar a investigação das causas de óbitos e acidentes graves. Após o encerramento da análise, o MTE envia suas conclusões à Procuradoria do INSS para a possível proposição de ações regressivas contra os responsáveis, com o objetivo de recuperar para os cofres públicos os recursos gastos com benefícios previdenciários.
Fonte: www.reporterbrasil.com.br
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
Enchentes renovaram o ambientalismo catarinense?
Guilherme Floriani
O governador Luis Henrique da Silveira (PMDB) anunciou a maior tragédia da história, mais de 100 vítimas fatais. Estes se somaram às 340 mortes das 5 maiores enchentes ocorridas desde 1974 no Estado. As chuvas torrenciais seriam uma profecia ambientalista, mas mudanças climáticas globais já enviaram o furacão Catarina em 2004, um ciclone extratropical e totalmente inesperado.
Desta vez, uma enorme repercussão na mídia, e pronta resposta governamental, em socorro às vítimas. De lideranças locais à senadora Marina Silva partiram manifestos destacando a ingerência ambiental na escalada dos efeitos da chuva. O silêncio dos políticos da situação a respeito inspirou ainda maior desconfiança. Muito ocupados no socorro às vítimas ou sentem-se comprometidos com o tenebroso panorama instalado.
Os 283 litros despejados num dia em cada metro quadrado de Blumenau parecem ter sido a gota d'água para transbordar a pressão reacionária na política ambiental nacional. A ampla comoção social pode instar uma tomada de consciência dos milhares que sofrem diariamente suas tragédias individuais decorrentes do mau uso do ambiente. Um possível divisor de águas no curso ambientalista brasileiro, pois Santa Catarina serve de alerta dos efeitos da degradação do Planeta que ameaçam todo o Brasil, bem como, em todo o país, ocorrem neste momento fortes ameaças ao meio-ambiente.
Sinal deste novo tempo catarinense é a pressão contra o Projeto de Lei Estadual 238/2008 do governador catarinense, que institui o Código do Meio Ambiente Estadual. Inconstitucional segundo a Procuradora da República Analúcia Hartmann, fere a Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, o Código Florestal brasileiro, reduzindo matas ciliares a uma linha de 5m de largura. Ameaçaria Unidades de Conservação na área afetada pela enchente, e afogaria o processo de licenciamento, autorizando automaticamente os empreendimentos não vistoriados pelo órgão ambiental em 60 dias.
A proposta encontrava eco na Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC), Sindicatos da Construção Civil (SINDUSCON) e Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado (FETAESC), que compõem o "setor produtivo" e consideram a legislação atual muito restritiva ao desenvolvimento.
Antes da água baixar iniciou um abaixo-assinado contra o projeto de lei, mas o documento base de pesquisadores apontando causas do desastre anunciado só foi publicado como matéria paga no maior jornal do Estado, do Grupo RBS (filiado à Globo). Outras matérias relacionadas não fazem referência ao fato de Santa Catarina ter liderado o desmatamento no país em 2007, nem às falcatruas no licenciamento ambiental como denunciou a operação Moeda Verde da Polícia Federal. Artigos de renomados ambientalistas também pouparam nomes dos responsáveis por ataques à legislação, uma fragilidade intervencionista no atual cenário político nacional.
Rendo-me à Marilena Chauí. Em "uma ideologia perversa" a ética passou a ser inseparável da ideologia do consenso ao enfatizar o sofrimento individual e coletivo, e por isso obtém consenso de opinião: somos "éticos" porque nos solidarizamos às vítimas da enchente. Mas a contrapartida dessa ideologia é clara: não nos perguntem sobre como ser ético para evitar novas catástrofes, isso divide as opiniões, e a modernidade, como se sabe, é o consenso. Apóia-se a ética do bem ao enviar alimentos, fazer doações, mas não se promove autonomia individual para estabelecer normas de uso coletivo do ambiente. Nem co-responsabilidades ou controle social são provocados.
Por isso, seria oportunismo ambientalista apenas ameaçar a recorrência do problema, nem cabe pautar miraculosas obras de engenharia para conter enchentes, como provou New Orleans (EUA). Pois o cuidado de todo o ambiente, muito mais que matas ciliares, promoverá segurança à população, produção de água e alimentos de qualidade ou conservação da biodiversidade.
Da questão multifacetada e metatecnológica, surge uma ética que renova o ambientalismo? Há alguns dias, o diálogo caminhava para flexibilizar a legislação, e o Ministério Público firmou vultoso Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o "setor florestal". Para aqueles que perderam tudo, suas casas e parentes, o consenso agora deve ser outro. Talvez a tragédia não seja suficiente para mudar a sociologia provada perversa, mas pode provocar um renovado movimento social de diálogo com a natureza em Santa Catarina.
Guilherme Floriani reside em Lages (SC) e é Engenheiro Florestal
Fonte: www.cartamaior.com.br
O governador Luis Henrique da Silveira (PMDB) anunciou a maior tragédia da história, mais de 100 vítimas fatais. Estes se somaram às 340 mortes das 5 maiores enchentes ocorridas desde 1974 no Estado. As chuvas torrenciais seriam uma profecia ambientalista, mas mudanças climáticas globais já enviaram o furacão Catarina em 2004, um ciclone extratropical e totalmente inesperado.
Desta vez, uma enorme repercussão na mídia, e pronta resposta governamental, em socorro às vítimas. De lideranças locais à senadora Marina Silva partiram manifestos destacando a ingerência ambiental na escalada dos efeitos da chuva. O silêncio dos políticos da situação a respeito inspirou ainda maior desconfiança. Muito ocupados no socorro às vítimas ou sentem-se comprometidos com o tenebroso panorama instalado.
Os 283 litros despejados num dia em cada metro quadrado de Blumenau parecem ter sido a gota d'água para transbordar a pressão reacionária na política ambiental nacional. A ampla comoção social pode instar uma tomada de consciência dos milhares que sofrem diariamente suas tragédias individuais decorrentes do mau uso do ambiente. Um possível divisor de águas no curso ambientalista brasileiro, pois Santa Catarina serve de alerta dos efeitos da degradação do Planeta que ameaçam todo o Brasil, bem como, em todo o país, ocorrem neste momento fortes ameaças ao meio-ambiente.
Sinal deste novo tempo catarinense é a pressão contra o Projeto de Lei Estadual 238/2008 do governador catarinense, que institui o Código do Meio Ambiente Estadual. Inconstitucional segundo a Procuradora da República Analúcia Hartmann, fere a Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, o Código Florestal brasileiro, reduzindo matas ciliares a uma linha de 5m de largura. Ameaçaria Unidades de Conservação na área afetada pela enchente, e afogaria o processo de licenciamento, autorizando automaticamente os empreendimentos não vistoriados pelo órgão ambiental em 60 dias.
A proposta encontrava eco na Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC), Sindicatos da Construção Civil (SINDUSCON) e Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado (FETAESC), que compõem o "setor produtivo" e consideram a legislação atual muito restritiva ao desenvolvimento.
Antes da água baixar iniciou um abaixo-assinado contra o projeto de lei, mas o documento base de pesquisadores apontando causas do desastre anunciado só foi publicado como matéria paga no maior jornal do Estado, do Grupo RBS (filiado à Globo). Outras matérias relacionadas não fazem referência ao fato de Santa Catarina ter liderado o desmatamento no país em 2007, nem às falcatruas no licenciamento ambiental como denunciou a operação Moeda Verde da Polícia Federal. Artigos de renomados ambientalistas também pouparam nomes dos responsáveis por ataques à legislação, uma fragilidade intervencionista no atual cenário político nacional.
Rendo-me à Marilena Chauí. Em "uma ideologia perversa" a ética passou a ser inseparável da ideologia do consenso ao enfatizar o sofrimento individual e coletivo, e por isso obtém consenso de opinião: somos "éticos" porque nos solidarizamos às vítimas da enchente. Mas a contrapartida dessa ideologia é clara: não nos perguntem sobre como ser ético para evitar novas catástrofes, isso divide as opiniões, e a modernidade, como se sabe, é o consenso. Apóia-se a ética do bem ao enviar alimentos, fazer doações, mas não se promove autonomia individual para estabelecer normas de uso coletivo do ambiente. Nem co-responsabilidades ou controle social são provocados.
Por isso, seria oportunismo ambientalista apenas ameaçar a recorrência do problema, nem cabe pautar miraculosas obras de engenharia para conter enchentes, como provou New Orleans (EUA). Pois o cuidado de todo o ambiente, muito mais que matas ciliares, promoverá segurança à população, produção de água e alimentos de qualidade ou conservação da biodiversidade.
Da questão multifacetada e metatecnológica, surge uma ética que renova o ambientalismo? Há alguns dias, o diálogo caminhava para flexibilizar a legislação, e o Ministério Público firmou vultoso Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o "setor florestal". Para aqueles que perderam tudo, suas casas e parentes, o consenso agora deve ser outro. Talvez a tragédia não seja suficiente para mudar a sociologia provada perversa, mas pode provocar um renovado movimento social de diálogo com a natureza em Santa Catarina.
Guilherme Floriani reside em Lages (SC) e é Engenheiro Florestal
Fonte: www.cartamaior.com.br
quarta-feira, 3 de dezembro de 2008
Perdidos no espaço
Por Fábio Adiron
Andei pensando sobre o que é o espaço urbano. Primeiro fui ao dicionário e descobri que a principal definição de espaço é uma "extensão indefinida". Urbano se refere aquilo que é "da cidade ou próprio da cidade". Logo, espaço urbano é qualquer extensão indefinida dentro de uma cidade. Sendo qualquer lugar torna-se, ao mesmo tempo, todos os lugares.
O que não quer dizer que todos os lugares da cidade podem ser freqüentados por todos. E nem estou pensando em questões de uso de locais privados, nem os espaços ditos públicos (que deveriam ser comuns a todos) realmente o são.
A explicação é triste, mas é real: nem todos são considerados seres humanos do mesmo valor. Pobres e negros são acompanhados de perto por seguranças de shopping centers, tipos que usem roupas exóticas são olhados como sendo de outro planeta. Quando não são assassinados por aqueles que deveriam lhes garantir a segurança, como ocorreu recentemente em São Paulo.
E as pessoas com deficiência...ah as pessoas com deficiência, são uns coitadinhos que deveriam ficar guardados dentro de casa ou de alguma instituição que cuidasse dos mesmos, que diabos esses caras inventam de circular nas ruas?
Além de não serem considerados cidadãos de primeira classe, também acredita-se que se são "deficientes", eles é que precisam dar conta das suas limitações, que precisam superar suas dificuldades - o problema é deles, não de todos.
Um cadeirante não consegue atravessar um quarteirão inteiro, afinal cada dono de casa ou prédio é responsável por sua calçada e essas não tem padronização nenhuma, mudam de nivel a cada dez metros, formam degraus. Muitas não tem manutenção nenhuma. Se, por um milagre conseguem chegar onde queriam, não podem entrar pois os arquitetos fizeram escadarias monumentais ou instalaram elevadores cujas portas não tem largura suficiente para uma cadeira de rodas.
As pessoas cegas também sofrem as agruras da falta de acessibilidade. Alguns elevadores tem o teclado em braille. Mas nem todo cego lê braille, pior, os que sabem braille conseguem apertar o botão do andar para onde querem ir, mas como descobrem que o elevador chegou no pavimento desejado? Pare para pensar um pouco : como é que um cego consegue atravessar sozinho uma rua? Também são pessoas que querem viver com autonomia e não ter de depender dos outros para se movimentar.
Pessoas surdas podem não ter restrições de mobilidade ou de visão. O que não significa que o espaço de todos lhes seja seguro. Mais de uma vez, em notícias recentes, pessoas surdas foram presas porque se "recusavam" a responder questionamento de policiais!
Se a deficiência é intelectual a hostilidade já começa no olhar. Se não é hostilidade é compaixão assistencialista : "aquele moço com Síndrome de Down andando sozinho na rua deve estar perdido...será que a família não cuida dele?" As pessoas fazem todas as suposições, exceto é de que essas pessoas tem capacidade para viver e se locomover como qualquer outro. Afinal, ele não é um ser tão humano como nós, não é mesmo?
Mas não são só os cadeirantes, cegos, surdos ou pessoas com deficiência intelectual.
Outro dia vi uma mãe empurrando o carrinho de bebê pelo meio da rua, correndo o risco de ser atropelada, pois a calçada era inviável. Uma pessoa obesa não entra em muitos elevadores e banheiros que já vi por aí. Ops! Então essa tal de acessibilidade não é só para pessoas com deficiência? Pessoas idosas poderiam ser beneficiadas? Mulheres grávidas ? Até os meninos que empurram os carrinhos de entrega de supermercado? Semáforos sonoros seriam mais seguros para todos? Respeito é bom para todo mundo.
Derrubar barreiras físicas, de comunicação e de atitude pode beneficiar todo mundo. Não é um privilégio concedido às pessoas com deficiência.
Mas isso só vai acontecer quando a diversidade for considerada como valor. Esta incompreensão da cultura da diversidade implica em que a sociedade pense que a inclusão seja destinada a melhorar a a vida das pessoas com deficiência e não a vida da população em geral.
A cultura da diversidade vai nos permitir construir uma cidade de qualidade, espaços de de qualidade e cidadãos de qualidade. A cultura da diversidade é um processo de aprendizagem permanente, onde TODOS devemos aprender a compartilhar novos significados e novos comportamentos de relações entre as pessoas.
Para o bem e para o mal.
Fonte: http://xiitadainclusao.blogspot.com/2008_11_01_archive.html
Andei pensando sobre o que é o espaço urbano. Primeiro fui ao dicionário e descobri que a principal definição de espaço é uma "extensão indefinida". Urbano se refere aquilo que é "da cidade ou próprio da cidade". Logo, espaço urbano é qualquer extensão indefinida dentro de uma cidade. Sendo qualquer lugar torna-se, ao mesmo tempo, todos os lugares.
O que não quer dizer que todos os lugares da cidade podem ser freqüentados por todos. E nem estou pensando em questões de uso de locais privados, nem os espaços ditos públicos (que deveriam ser comuns a todos) realmente o são.
A explicação é triste, mas é real: nem todos são considerados seres humanos do mesmo valor. Pobres e negros são acompanhados de perto por seguranças de shopping centers, tipos que usem roupas exóticas são olhados como sendo de outro planeta. Quando não são assassinados por aqueles que deveriam lhes garantir a segurança, como ocorreu recentemente em São Paulo.
E as pessoas com deficiência...ah as pessoas com deficiência, são uns coitadinhos que deveriam ficar guardados dentro de casa ou de alguma instituição que cuidasse dos mesmos, que diabos esses caras inventam de circular nas ruas?
Além de não serem considerados cidadãos de primeira classe, também acredita-se que se são "deficientes", eles é que precisam dar conta das suas limitações, que precisam superar suas dificuldades - o problema é deles, não de todos.
Um cadeirante não consegue atravessar um quarteirão inteiro, afinal cada dono de casa ou prédio é responsável por sua calçada e essas não tem padronização nenhuma, mudam de nivel a cada dez metros, formam degraus. Muitas não tem manutenção nenhuma. Se, por um milagre conseguem chegar onde queriam, não podem entrar pois os arquitetos fizeram escadarias monumentais ou instalaram elevadores cujas portas não tem largura suficiente para uma cadeira de rodas.
As pessoas cegas também sofrem as agruras da falta de acessibilidade. Alguns elevadores tem o teclado em braille. Mas nem todo cego lê braille, pior, os que sabem braille conseguem apertar o botão do andar para onde querem ir, mas como descobrem que o elevador chegou no pavimento desejado? Pare para pensar um pouco : como é que um cego consegue atravessar sozinho uma rua? Também são pessoas que querem viver com autonomia e não ter de depender dos outros para se movimentar.
Pessoas surdas podem não ter restrições de mobilidade ou de visão. O que não significa que o espaço de todos lhes seja seguro. Mais de uma vez, em notícias recentes, pessoas surdas foram presas porque se "recusavam" a responder questionamento de policiais!
Se a deficiência é intelectual a hostilidade já começa no olhar. Se não é hostilidade é compaixão assistencialista : "aquele moço com Síndrome de Down andando sozinho na rua deve estar perdido...será que a família não cuida dele?" As pessoas fazem todas as suposições, exceto é de que essas pessoas tem capacidade para viver e se locomover como qualquer outro. Afinal, ele não é um ser tão humano como nós, não é mesmo?
Mas não são só os cadeirantes, cegos, surdos ou pessoas com deficiência intelectual.
Outro dia vi uma mãe empurrando o carrinho de bebê pelo meio da rua, correndo o risco de ser atropelada, pois a calçada era inviável. Uma pessoa obesa não entra em muitos elevadores e banheiros que já vi por aí. Ops! Então essa tal de acessibilidade não é só para pessoas com deficiência? Pessoas idosas poderiam ser beneficiadas? Mulheres grávidas ? Até os meninos que empurram os carrinhos de entrega de supermercado? Semáforos sonoros seriam mais seguros para todos? Respeito é bom para todo mundo.
Derrubar barreiras físicas, de comunicação e de atitude pode beneficiar todo mundo. Não é um privilégio concedido às pessoas com deficiência.
Mas isso só vai acontecer quando a diversidade for considerada como valor. Esta incompreensão da cultura da diversidade implica em que a sociedade pense que a inclusão seja destinada a melhorar a a vida das pessoas com deficiência e não a vida da população em geral.
A cultura da diversidade vai nos permitir construir uma cidade de qualidade, espaços de de qualidade e cidadãos de qualidade. A cultura da diversidade é um processo de aprendizagem permanente, onde TODOS devemos aprender a compartilhar novos significados e novos comportamentos de relações entre as pessoas.
Para o bem e para o mal.
Fonte: http://xiitadainclusao.blogspot.com/2008_11_01_archive.html
quarta-feira, 26 de novembro de 2008
Enfim, a crise... Enfim, a razão?
Jorge Luiz Souto Maior(*)
Há muitos anos fala-se, no Brasil, de uma “crise econômica” como forma de justificar uma reiterada reivindicação de redução das garantias jurídicas de natureza social (direitos trabalhistas e previdenciários).
Eis que de repente vivenciamos, enfim, uma real, concreta e insofismável crise econômica de âmbito mundial. Seus efeitos, entretanto, surpreendem.
O primeiro efeito, talvez o mais relevante, é o de que a humanidade, pressionada pela necessidade de tentar solucionar uma grave crise passa a pensar seriamente. Ou seja, após longos anos de hegemonia ideológica, recobrou-se a razão e conforme preconiza a Declaração Universal dos Direitos do Homem, as pessoas devem utilizar sua razão para agir em relação aos outros com espírito de fraternidade (1).
Como agora a crise não é apenas uma retórica, faz-se necessária a apresentação de argumentos sérios para tentar enfrentá-la. E, concretamente, ninguém está brincando com a crise. As opiniões, ainda que divergentes, se apresentam de forma responsável. “Todos contra a crise”, anuncia o G7.
No que tange aos meios para sair da crise, seriamente encarados, destaca-se o de que o Estado não pode restar alheio à crise do mercado financeiro. A participação ativa do Estado, regulando o modelo, apresenta-se fundamental para evitar o colapso. A mera somatória de interesses individuais não é capaz de desenvolver políticas públicas sociais, mesmo que as empresas anunciem possuir “responsabilidade social”. A desregulação plena do mercado incentiva uma lógica de concorrência autodestrutiva (2).
É bem verdade que não há uma coincidência de idéias quanto à pertinência de “injeção” de dinheiro público para salvar empresas do mercado financeiro. A “ajuda” ao mercado financeiro, dada pelo Estado, com o dinheiro público, se, por um lado, procura evitar a quebra em cascata, por outro, representa incentivar o desenvolvimento de um capitalismo sem risco, mantendo a idéia de que o lucro pertence à iniciativa privada e o prejuízo deve ser suportado pelo Estado. Nestes termos o manifesto publicado por mais de 200 economistas americanos, de diversas universidades, expondo, publicamente, sua preocupação com a destinação de verbas públicas a instituições financeiras que durante muitos anos obtiveram grandes lucros com suas operações de alto risco.
Esse dinheiro, reclamam os líderes de ações humanitárias, nunca lhes pode ser destinado...
De todo modo, resta definitivamente abalada a idéia de que os mercados se auto-regulam e que são capazes, por si sós, de produzir justiça social. Essa certeza, aliás, já existia desde o final da Primeira Guerra Mundial, com reafirmação após a Segunda Grande Guerra, tendo sido expressada em inúmeras Declarações Internacionais.
O segundo efeito importante, em termos de respostas sérias a uma verdadeira crise, é o de que em nenhum momento se tem falado, como antes era costume, em diminuição de garantias sociais. Aliás, muito pelo contrário. Na Espanha, por exemplo, que foi o país europeu em que mais se evidenciou a política de precarização das relações de trabalho e onde se experimentam, agora, as graves conseqüências do maior número de desempregados dos últimos 10 (dez) anos, anuncia-se um plano para conferir maior proteção social aos trabalhadores abrangidos pela flexibilizadora “Lei do Trabalhador Autônomo”, que atualmente atinge três milhões de espanhóis.
Em termos de relações de trabalho, até bem pouco tempo atrás, sem muito apego às conseqüências, dizia-se, no Brasil, em bom português, que “se deve manter o poder das empresas de se livrarem de seus empregados quando bem entenderem”, mas, agora, diante da autêntica crise econômica, a prioridade, reconhece-se, é a preservação dos empregos, tida como política econômica fundamental em âmbito local e mundial. “Diante da crise, prioridade é emprego e crédito”, diz, no Brasil, a Ministra Dilma Roussef (3). Já os líderes europeus anunciam que vão adotar medidas para proteger empregos e crescimento (4).
Sabe-se bem que um desemprego em massa, norteado pelos interesses particulares de cada empresa, conduz ao colapso do modelo. Não é possível sair da crise, deixando que as empresas, por interesses próprios, conduzam, sem qualquer freio, milhares, milhões de pessoas, ao desemprego. Uma atitude generalizada neste sentido só tende a agravar a situação atual e a levar ao desajuste pleno do sistema econômico em escala mundial.
Diante da anterior “crise”, de cunho retórico, tentava-se fazer acreditar que salvar empresas em dificuldade econômica, conduzindo pessoas ao desemprego, era a única fórmula válida de construção social. Mas, a imposição de sacrifícios apenas aos trabalhadores, para salvar empresas que ao longo de anos deixaram de cumprir obrigações tributárias e sociais, nunca foi e nunca será uma política econômica responsável e isto, no enfrentamento da atual verdadeira crise, que chamou todos à razão, é, agora, reconhecido sem qualquer resistência.
Oportuna, por isso mesmo, a advertência feita pela Associação Latino-Americana de Juízes do Trabalho, em nota oficial, no sentido de que o maior perigo da crise é o do abandono do sistema jurídico de natureza social, cabendo aos juízes assumirem o compromisso de transmitir para a sociedade a certeza da preservação da eficácia desses direitos.
É relevante verificar que os dados da atual crise talvez sejam mais alarmantes que os do “crash” de 29, mas só não se chegou, ainda, ao mesmo efeito trágico, por conta, exatamente, dos freios impostos pelas políticas públicas, que, funcionando, interligam, por ação do Estado, interesses econômicos e garantias sociais, conferindo uma espécie de “sentido moral à economia” (5).
É por isso que o discurso, em torno do custo do trabalho, em época de verdadeira crise, mudou necessariamente. É possível constatar que nenhum economista, de qualquer linha ideológica que seja, trata, presentemente, da questão da crise econômica por essa via oblíqua. Nenhuma solução apresentada para a crise parte do pressuposto da necessidade de se reduzirem garantias sociais. A própria questão da “informalidade”, quase sempre apresentada, no Brasil, como causa do custo do trabalho, finalmente é tratada pelos aspectos restritos da questão tributária e da necessária política de apoio ao micro-empresário, como, aliás, deve mesmo ser (6).
Não foi por coincidência que o prêmio Nobel de Economia, em meio a presente crise, foi conferido a Paul Krugman, que se notabilizou nos últimos anos pela crítica à política “neoliberal” do governo Bush.
Mas, não é só. Outra grande perplexidade gerada pelos primeiros efeitos da crise é a de que, embora o Brasil já comece a sentir os sintomas da crise, segundo acaba de anunciar o IBGE, o número de pessoas ocupadas nas seis principais regiões metropolitanas do País somou 21,98 milhões em setembro, com alta de 0,7% com relação a agosto, e de 3,4%, diante de setembro do ano passado e o contingente de empregados com carteira assinada (emprego formal) prosseguiu na trajetória de alta em setembro, com acréscimo de 1,1% com relação a agosto, e aumento de 6%, no confronto com setembro do ano passado.
Seria equivocado dizer que os dados em questão demonstram que a crise econômica não abalou e não abalará os empregos, até porque os seus efeitos talvez ainda não tenham sido complemente sentidos. Por outro lado, não deixa de ser uma razoável demonstração de que a economia tem razões que a própria economia desconhece e que é mesmo, no mínimo, uma irresponsabilidade considerar que se possa desenvolvê-la a partir do mero pressuposto da retração das garantias sociais.
São muitas, por óbvio, as variantes e é extremante difícil apontar causas e fixar prognósticos. Por que chegamos a esse momento? Até onde vai a crise? São respostas que devemos procurar, para, emergencialmente, impedir que a situação fique sem controle e, em um segundo momento, para evitar que torne a ocorrer.
O mais importante, no entanto, é não ficar tentando apontar vencidos e vencedores, como se debate social fosse um jogo para satisfação pessoal. No cômputo geral, o que se percebe é que a razão, respondendo aos chamados das Declarações Internacionais firmados ao longo de décadas após duas guerras mundiais, tende a prevalecer. Não se pode desprezar a perspectiva da justiça social, pois nenhum sucesso econômico advirá baseado na miséria econômica e cultural alheia. Uma sociedade sólida, e que vale a pena defender, é aquela que fornece a todos condições dignas de sobrevivência e de desenvolvimento pessoal.
Neste contexto, está, necessariamente, afastada a idéia de que a profusão econômica possa ser pensada ao custo das garantias trabalhistas, pois que incentiva a concorrência na lógica do “dumping” social. A última coisa que se pode pensar agora é no aprofundamento dos problemas sociais, que, certamente, advêm do aumento do desemprego e da diminuição generalizada, sem qualquer limite, do ganho da classe trabalhadora. Uma classe social sozinha não pode suportar os efeitos dos desajustes econômicos e ser chamada para se sacrificar por um modelo que, com esta perspectiva, não faria nada além do que meramente lhe explorar.
A relevante contribuição que o direito pode dar para suplantar a crise é a mesma que se fixou no período pós-segunda guerra mundial: reafirmação da eficácia dos preceitos que tornam o pacto de solidariedade em valor jurídico.
Não há espaço, portanto, para continuar falando em liberdade contratual irrestrita em matéria trabalhista; em não-intervenção do Estado nas relações de trabalho; em responsabilidade por culpa nos acidentes do trabalho; em livre-iniciativa desvinculada da verdadeira função social de preservação dos empregos; em mercado dos competentes, atribuindo aos desempregados a pecha de “inimpregáveis” por não possuírem a qualificação exigida por uma quase sagrada competição; em afirmar que os vencedores fizeram por merecer e que os perdedores são culpados por seu próprio destino; em livre-concorrência sem peias; em liberdade para impor, pelo poder, renúncias a direitos tidos como fundamentais; em flexibilização de garantias sociais; em intermediação de mão-de-obra como técnica administrativa moderna e como requisito de inserção na concorrência mundial, permitindo com isso que pessoas sejam transformadas em coisas; em caráter programático das normas de proteção social; em fatalismo sócio-econômico determinado pela inexorável “globalização”, que aparece, assim, como justificativa de toda e qualquer injustiça social; pois, certamente, nada disso contribui para um enfrentamento sério dos problemas atuais.
A partir do teor das manifestações apresentadas diante de uma verdadeira crise econômica de nível mundial, é possível extrair a conclusão de que a humanidade não está disposta a passar, novamente, pelas graves conseqüências de um capitalismo desregrado, que agasalha apenas interesses imediatos de lucros de alguns segmentos, e por isso, está recobrando a razão para reafirmar os compromissos assumidos com a eficácia dos Direitos Humanos de natureza social.
No fundo, tento acreditar que isso seja mesmo verdade, torcendo para que não tenhamos que sofrer muito para, enfim, apreender essa lição e para que, uma vez superada a crise, não a esqueçamos rapidamente...
(*) Juiz do trabalho, membro da Associação Juízes para a Democracia e professor de direito do trabalho da Faculdade de Direito da USP.
Notas:
1. Art. I - “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito 2. Vide, neste sentido, as observações insuspeitas de Carlos Bresser Pereira, enunciadas em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 21/10/08: “A Volta da Política” e de Abram Szajman (“O Tamanho do Tombo e suas Lições”, publicado na Folha de São Paulo, edição de 22/10/08, p. A-3), ainda que em tom mais ameno.
3. Agência Estado - 17/10 - 18:15: http://ultimosegundo.ig.com.br/economia/2008/10/17/dilma_diante_da_crise_prioridade_e_emprego_e_credito_2054119.html
4. Folha “on line”, 16/10/2008 - 15h07, http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u456966.shtml
5. Segundo expressão de Rubens Ricupero, “Moral da Crise”, Folha de São Paulo, edição de 26/10/08, p. B-2
6. Vide, a propósito, texto de Guilherme Afif Domingos, “MEI – pela formalização de um país”, publicado na Folha de São Paulo, edição de 21/10/08, p. A-3.
Há muitos anos fala-se, no Brasil, de uma “crise econômica” como forma de justificar uma reiterada reivindicação de redução das garantias jurídicas de natureza social (direitos trabalhistas e previdenciários).
Eis que de repente vivenciamos, enfim, uma real, concreta e insofismável crise econômica de âmbito mundial. Seus efeitos, entretanto, surpreendem.
O primeiro efeito, talvez o mais relevante, é o de que a humanidade, pressionada pela necessidade de tentar solucionar uma grave crise passa a pensar seriamente. Ou seja, após longos anos de hegemonia ideológica, recobrou-se a razão e conforme preconiza a Declaração Universal dos Direitos do Homem, as pessoas devem utilizar sua razão para agir em relação aos outros com espírito de fraternidade (1).
Como agora a crise não é apenas uma retórica, faz-se necessária a apresentação de argumentos sérios para tentar enfrentá-la. E, concretamente, ninguém está brincando com a crise. As opiniões, ainda que divergentes, se apresentam de forma responsável. “Todos contra a crise”, anuncia o G7.
No que tange aos meios para sair da crise, seriamente encarados, destaca-se o de que o Estado não pode restar alheio à crise do mercado financeiro. A participação ativa do Estado, regulando o modelo, apresenta-se fundamental para evitar o colapso. A mera somatória de interesses individuais não é capaz de desenvolver políticas públicas sociais, mesmo que as empresas anunciem possuir “responsabilidade social”. A desregulação plena do mercado incentiva uma lógica de concorrência autodestrutiva (2).
É bem verdade que não há uma coincidência de idéias quanto à pertinência de “injeção” de dinheiro público para salvar empresas do mercado financeiro. A “ajuda” ao mercado financeiro, dada pelo Estado, com o dinheiro público, se, por um lado, procura evitar a quebra em cascata, por outro, representa incentivar o desenvolvimento de um capitalismo sem risco, mantendo a idéia de que o lucro pertence à iniciativa privada e o prejuízo deve ser suportado pelo Estado. Nestes termos o manifesto publicado por mais de 200 economistas americanos, de diversas universidades, expondo, publicamente, sua preocupação com a destinação de verbas públicas a instituições financeiras que durante muitos anos obtiveram grandes lucros com suas operações de alto risco.
Esse dinheiro, reclamam os líderes de ações humanitárias, nunca lhes pode ser destinado...
De todo modo, resta definitivamente abalada a idéia de que os mercados se auto-regulam e que são capazes, por si sós, de produzir justiça social. Essa certeza, aliás, já existia desde o final da Primeira Guerra Mundial, com reafirmação após a Segunda Grande Guerra, tendo sido expressada em inúmeras Declarações Internacionais.
O segundo efeito importante, em termos de respostas sérias a uma verdadeira crise, é o de que em nenhum momento se tem falado, como antes era costume, em diminuição de garantias sociais. Aliás, muito pelo contrário. Na Espanha, por exemplo, que foi o país europeu em que mais se evidenciou a política de precarização das relações de trabalho e onde se experimentam, agora, as graves conseqüências do maior número de desempregados dos últimos 10 (dez) anos, anuncia-se um plano para conferir maior proteção social aos trabalhadores abrangidos pela flexibilizadora “Lei do Trabalhador Autônomo”, que atualmente atinge três milhões de espanhóis.
Em termos de relações de trabalho, até bem pouco tempo atrás, sem muito apego às conseqüências, dizia-se, no Brasil, em bom português, que “se deve manter o poder das empresas de se livrarem de seus empregados quando bem entenderem”, mas, agora, diante da autêntica crise econômica, a prioridade, reconhece-se, é a preservação dos empregos, tida como política econômica fundamental em âmbito local e mundial. “Diante da crise, prioridade é emprego e crédito”, diz, no Brasil, a Ministra Dilma Roussef (3). Já os líderes europeus anunciam que vão adotar medidas para proteger empregos e crescimento (4).
Sabe-se bem que um desemprego em massa, norteado pelos interesses particulares de cada empresa, conduz ao colapso do modelo. Não é possível sair da crise, deixando que as empresas, por interesses próprios, conduzam, sem qualquer freio, milhares, milhões de pessoas, ao desemprego. Uma atitude generalizada neste sentido só tende a agravar a situação atual e a levar ao desajuste pleno do sistema econômico em escala mundial.
Diante da anterior “crise”, de cunho retórico, tentava-se fazer acreditar que salvar empresas em dificuldade econômica, conduzindo pessoas ao desemprego, era a única fórmula válida de construção social. Mas, a imposição de sacrifícios apenas aos trabalhadores, para salvar empresas que ao longo de anos deixaram de cumprir obrigações tributárias e sociais, nunca foi e nunca será uma política econômica responsável e isto, no enfrentamento da atual verdadeira crise, que chamou todos à razão, é, agora, reconhecido sem qualquer resistência.
Oportuna, por isso mesmo, a advertência feita pela Associação Latino-Americana de Juízes do Trabalho, em nota oficial, no sentido de que o maior perigo da crise é o do abandono do sistema jurídico de natureza social, cabendo aos juízes assumirem o compromisso de transmitir para a sociedade a certeza da preservação da eficácia desses direitos.
É relevante verificar que os dados da atual crise talvez sejam mais alarmantes que os do “crash” de 29, mas só não se chegou, ainda, ao mesmo efeito trágico, por conta, exatamente, dos freios impostos pelas políticas públicas, que, funcionando, interligam, por ação do Estado, interesses econômicos e garantias sociais, conferindo uma espécie de “sentido moral à economia” (5).
É por isso que o discurso, em torno do custo do trabalho, em época de verdadeira crise, mudou necessariamente. É possível constatar que nenhum economista, de qualquer linha ideológica que seja, trata, presentemente, da questão da crise econômica por essa via oblíqua. Nenhuma solução apresentada para a crise parte do pressuposto da necessidade de se reduzirem garantias sociais. A própria questão da “informalidade”, quase sempre apresentada, no Brasil, como causa do custo do trabalho, finalmente é tratada pelos aspectos restritos da questão tributária e da necessária política de apoio ao micro-empresário, como, aliás, deve mesmo ser (6).
Não foi por coincidência que o prêmio Nobel de Economia, em meio a presente crise, foi conferido a Paul Krugman, que se notabilizou nos últimos anos pela crítica à política “neoliberal” do governo Bush.
Mas, não é só. Outra grande perplexidade gerada pelos primeiros efeitos da crise é a de que, embora o Brasil já comece a sentir os sintomas da crise, segundo acaba de anunciar o IBGE, o número de pessoas ocupadas nas seis principais regiões metropolitanas do País somou 21,98 milhões em setembro, com alta de 0,7% com relação a agosto, e de 3,4%, diante de setembro do ano passado e o contingente de empregados com carteira assinada (emprego formal) prosseguiu na trajetória de alta em setembro, com acréscimo de 1,1% com relação a agosto, e aumento de 6%, no confronto com setembro do ano passado.
Seria equivocado dizer que os dados em questão demonstram que a crise econômica não abalou e não abalará os empregos, até porque os seus efeitos talvez ainda não tenham sido complemente sentidos. Por outro lado, não deixa de ser uma razoável demonstração de que a economia tem razões que a própria economia desconhece e que é mesmo, no mínimo, uma irresponsabilidade considerar que se possa desenvolvê-la a partir do mero pressuposto da retração das garantias sociais.
São muitas, por óbvio, as variantes e é extremante difícil apontar causas e fixar prognósticos. Por que chegamos a esse momento? Até onde vai a crise? São respostas que devemos procurar, para, emergencialmente, impedir que a situação fique sem controle e, em um segundo momento, para evitar que torne a ocorrer.
O mais importante, no entanto, é não ficar tentando apontar vencidos e vencedores, como se debate social fosse um jogo para satisfação pessoal. No cômputo geral, o que se percebe é que a razão, respondendo aos chamados das Declarações Internacionais firmados ao longo de décadas após duas guerras mundiais, tende a prevalecer. Não se pode desprezar a perspectiva da justiça social, pois nenhum sucesso econômico advirá baseado na miséria econômica e cultural alheia. Uma sociedade sólida, e que vale a pena defender, é aquela que fornece a todos condições dignas de sobrevivência e de desenvolvimento pessoal.
Neste contexto, está, necessariamente, afastada a idéia de que a profusão econômica possa ser pensada ao custo das garantias trabalhistas, pois que incentiva a concorrência na lógica do “dumping” social. A última coisa que se pode pensar agora é no aprofundamento dos problemas sociais, que, certamente, advêm do aumento do desemprego e da diminuição generalizada, sem qualquer limite, do ganho da classe trabalhadora. Uma classe social sozinha não pode suportar os efeitos dos desajustes econômicos e ser chamada para se sacrificar por um modelo que, com esta perspectiva, não faria nada além do que meramente lhe explorar.
A relevante contribuição que o direito pode dar para suplantar a crise é a mesma que se fixou no período pós-segunda guerra mundial: reafirmação da eficácia dos preceitos que tornam o pacto de solidariedade em valor jurídico.
Não há espaço, portanto, para continuar falando em liberdade contratual irrestrita em matéria trabalhista; em não-intervenção do Estado nas relações de trabalho; em responsabilidade por culpa nos acidentes do trabalho; em livre-iniciativa desvinculada da verdadeira função social de preservação dos empregos; em mercado dos competentes, atribuindo aos desempregados a pecha de “inimpregáveis” por não possuírem a qualificação exigida por uma quase sagrada competição; em afirmar que os vencedores fizeram por merecer e que os perdedores são culpados por seu próprio destino; em livre-concorrência sem peias; em liberdade para impor, pelo poder, renúncias a direitos tidos como fundamentais; em flexibilização de garantias sociais; em intermediação de mão-de-obra como técnica administrativa moderna e como requisito de inserção na concorrência mundial, permitindo com isso que pessoas sejam transformadas em coisas; em caráter programático das normas de proteção social; em fatalismo sócio-econômico determinado pela inexorável “globalização”, que aparece, assim, como justificativa de toda e qualquer injustiça social; pois, certamente, nada disso contribui para um enfrentamento sério dos problemas atuais.
A partir do teor das manifestações apresentadas diante de uma verdadeira crise econômica de nível mundial, é possível extrair a conclusão de que a humanidade não está disposta a passar, novamente, pelas graves conseqüências de um capitalismo desregrado, que agasalha apenas interesses imediatos de lucros de alguns segmentos, e por isso, está recobrando a razão para reafirmar os compromissos assumidos com a eficácia dos Direitos Humanos de natureza social.
No fundo, tento acreditar que isso seja mesmo verdade, torcendo para que não tenhamos que sofrer muito para, enfim, apreender essa lição e para que, uma vez superada a crise, não a esqueçamos rapidamente...
(*) Juiz do trabalho, membro da Associação Juízes para a Democracia e professor de direito do trabalho da Faculdade de Direito da USP.
Notas:
1. Art. I - “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito 2. Vide, neste sentido, as observações insuspeitas de Carlos Bresser Pereira, enunciadas em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 21/10/08: “A Volta da Política” e de Abram Szajman (“O Tamanho do Tombo e suas Lições”, publicado na Folha de São Paulo, edição de 22/10/08, p. A-3), ainda que em tom mais ameno.
3. Agência Estado - 17/10 - 18:15: http://ultimosegundo.ig.com.br/economia/2008/10/17/dilma_diante_da_crise_prioridade_e_emprego_e_credito_2054119.html
4. Folha “on line”, 16/10/2008 - 15h07, http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u456966.shtml
5. Segundo expressão de Rubens Ricupero, “Moral da Crise”, Folha de São Paulo, edição de 26/10/08, p. B-2
6. Vide, a propósito, texto de Guilherme Afif Domingos, “MEI – pela formalização de um país”, publicado na Folha de São Paulo, edição de 21/10/08, p. A-3.
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